domingo, 20 de novembro de 2011

CELEBRAR A CONSCIÊNCIA NEGRA NA SOLENIDADE DE CRISTO REI-PASTOR

Esta é a homilia que desenvolvi nas comunidades nas quais estive presente e que ousaram realizar a liturgia inculturada. Uma boa reflexão:
Tudo o que estamos refletindo e contemplando neste espaço, tem uma dimensão espiritual profunda. Desde o espaço em si, cuidadosamente preparado, os cantos, os ritmos, as danças, as vestes, etc. Tudo isso faz parte da cultura negra e, por questão de justiça, está sendo levado em conta na liturgia. É, portanto, liturgia a caminho da inculturação. Alguém me perguntava: ‘padre, não é pecado, colocar macumba dentro da Igreja?’ Eu afirmei: ‘pecado é não colocar, se essa macumba, da qual você fala se refere à cultura negra’. Esta pessoa se espantou: ‘mas assim a gente perde a fé!’ Eu então reiterei: ‘Essa você não somente pode, mas deve perder, pois dessa fé você não precisa: uma fé preconceituosa, discriminadora, fechada e excludente só escandaliza as pessoas. Você precisa de uma fé amadurecida, que saiba acolher o diferente como uma grande riqueza, uma fé que integre as pessoas e que esteja comprometida com as realidades humanas, principalmente lá onde a dignidade humana é negada’. Bom, a pessoa não se convenceu muito, mas isso não importa, pois não temos como tirar água de pedra; essa tarefa competiu somente a Moisés; nem Jesus fez isso.
No entanto, nós não podemos fazer mistura. Mesmo que a cultura negra, desde África, seja considerada uma cultura religiosa, há diferença entre valor especificamente religioso e valor cultural, de uma forma geral. A confusão, muitas vezes vem, de um lado, da falta de discernimento de quem usa e de outro, de quem é racista de plantão e fica espreitando, como um verdadeiro ‘xiita’, pronto para ‘cair matando’. Só para comentar alguns: o atabaque não é religioso, é cultural sem deixar de ser sagrado. É ele que anuncia e marca os momentos fortes da comunidade, como os ritos de passagem, as celebrações e outros festejos. Se lá na religião afro ele é usado, é porque teve uma cerimônia de consagração para isso. As danças caracterizam um jeito afro de louvar a Deus – o povo negro reza dançando e dança rezando - e estas são muito incentivadas em documentos da CNBB; um dos trechos lembra que ‘as celebrações a caminho da inculturação em meios afro-brasileiros têm encantado por sua dinâmica, beleza e fidelidade aos sagrados mistérios celebrados’. Estes mesmos documentos orientam para que as danças sejam simples, fáceis e envolventes, a fim de que não se tornem espetáculo, mas um momento de envolver toda a assembleia. É bom lembrar que o objetivo é este, pois a comunidade negra, quando celebra, não faz espetáculo para turistas tirarem fotos. Há também, no documento de Aparecida, um reconhecimento por parte dos bispos da América latina e Caribe com relação às características fundamentais do povo negro, que tem contribuído muito na evangelização, que são: a expressividade corporal, o enraizamento familiar e o sentido de Deus (DAp 56). E assim salientam que esforços tem sido feitos para inculturar a liturgia em meios afrodescendentes, que é um caminho tenso, conflitivo, porém rico e necessário (Cf. DAp. 99). Se não descolonizarmos nossas mentes, nossos conhecimentos e não recuperarmos a memória histórica (Cf. DAp. 96), nós como Igreja, ficaremos apenas em palavras bonitas, perpetuando a dívida histórica que a sociedade tem com a população negra. E isto é hipocrisia!
Mas a solenidade de hoje nos faz ter uma postura diferente ao apresentar a imagem de Deus Rei-pastor, sempre atento às suas ovelhas, em contraposição aos pastores, lideranças do povo que, serviram-se do povo em benefício próprio, incentivando a infidelidade, deixando-o desprotegido, até que veio a desgraça do exílio, arruinando a vida do povo, dispersando-o. O profeta Ezequiel é a figura de alguém que realmente faz a diferença na vida deste povo, trazendo uma mensagem de esperança: é Deus mesmo que, como um bom pastor vai resgatar, cuidar e proteger seu povo disperso por todas as nações. Este cuidado se realiza de modo pleno em Jesus, que se revela como o Bom Pastor, identificando-se com os necessitados e protegendo-os. Apresenta-os como critério para pertencer ao seu reino. Seu reino, portanto, não é baseado em poder, tirania ou violência, mas no amor, na entrega e na doação. Ele, enquanto caminhava entre nós, não acolheu o título de rei em momentos de grandes destaques ou de feitos maravilhosos, mas em momentos de aparente derrota: diante de Pilatos e no alto da cruz. Jesus é rei porque entrega sua vida ao Pai pelos demais, abrindo o caminho para que os que o querem seguir, possam fazer o mesmo: entregar-se pelo bem dos outros. Neste reino que Jesus inaugura, o amor às pessoas é o critério fundamental de pertença. No final de nossas vidas, não será pedida a quantidade de missas que participamos ou quantas vezes nós chamamos o nome de Deus ou ainda quantos terços nós rezamos. Todas estas coisas são importantes, mas o que conta é o quanto fomos capazes de ser humanos e solidários, ou seja, o quanto fomos capazes de fazer o bem aos outros sem pensar em nós mesmos.
Celebrar o dia da consciência negra na solenidade de Cristo Rei-Pastor do Universo, é celebrar a alegria de pertencer ao rebanho de Cristo, vivendo o verdadeiro sentido de ser Igreja, Corpo de Cristo, unidade na diversidade, na valorização de todas as pessoas. É reconhecer nas lutas e conquistas da comunidade negra sinais visíveis e concretos da presença do reino que Cristo veio trazer. É reconhecer que, no sangue de Cristo, encontramos presente o sangue de Zumbi dos Palmares, da escrava Anastácia, Manuel Congo e de todos os Mártires da Causa negra.  É dia de celebrarmos a vida da nossa gente com todo o seu dinamismo, pois o Deus da vida continua nos concedendo dons e capacidades para contribuirmos na construção de uma sociedade mais humana e fraterna e continua suscitando em nosso meio tantos e tantas pequenos “Zumbis”, que empenham o melhor de si mesmos para fazer a diferença na vida do nosso povo, animando-o em sua caminhada. Viva Zumbi, viva o Povo negro, viva o Reino de Deus!
Modjumbá axé!
Pe. Degaaxé

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