sábado, 14 de abril de 2012

A ALEGRIA DE VIVER E TESTEMUNHAR A FÉ EM COMUNIDADE

           Deus nos deu o dom de ser e viver em comunidade para o nosso próprio bem e felicidade. Segundo o livro do Gênesis, “Não é bom que o ser humano esteja só” (Gn 2, 18). Somos individualidade, mas também relação. Quando cultivamos demasiadamente a individualidade, nasce o individualismo - o grande atentado à vida comunitária. A partir deste, muitos outros males virão. Ser individualista é como viver fora da comunidade, ou seja, morte. O povo crê piamente nisto, pois, ao considerar a comunidade como centro de sua vivência, acredita que fora da comunidade não há salvação, isto é, quem vive de modo egoísta atrai para si o caos, a perda do sentido, a morte. Quando vivenciamos de verdade os valores da vida comunitária, sentimos que a vida tem mais “sabor” e sentido, seja com nossa parentela, mas também em nível de comunidade eclesial, extensão da nossa comunidade familiar. É neste sentido que queremos refletir a profissão de fé comunitária na presença do Cristo ressuscitado.
           Logo após a prisão, paixão e morte de Jesus a comunidade dos seus seguidores parecia ter esquecido de tudo o que experimentou com ele: a acolhida, o aconchego, a segurança, a solidariedade, a garantia de sua presença até o fim do mundo, cem vezes mais nesta vida e felicidade sem fim na outra, a não ter medo de tempestades, a buscar em primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, a paixão por Deus e pelo ser humano, o engajamento profético em favor da vida, rompendo com as estruturas injustas, a cultivar um estilo de vida simples, a escolher a melhor parte, a perdoar sem limites, a fazer da vida doação, a olhar as situações humanas com ternura e compaixão, mas também com indignação, a sintonizar a própria vontade com a vontade de Deus. Diante de tudo isso, resolvem “fechar as portas”, simplesmente por medo.
           Herdamos a identidade desta comunidade e de seus seguidores imediatos. O fechamento de portas também vem no ‘pacote’. A experiência de fechar as portas traduz muito nossas dificuldades em sermos realmente quem devemos ser. Porta é a vida, o coração. Se estão fechadas é sinal de que algo não está indo bem e que precisa mudar: para com Deus, a fim de que ele encontre espaço e mexa conosco do jeito que ele deseja; e para com os outros a fim de que nos digam coisas que não queremos admitir, mas que precisamos ouvir. O autor John Powel, em seu livro Por que tenho medo de lhe dizer quem sou?, diz que muitas vezes, por medo de não sermos aceitos e acolhidos, não revelamos quem realmente somos e nos fechamos. E fechados, prejudicamos a toda a comunidade.
           As situações de violência, assaltos e roubos em redor, ameaçam nossas vidas e nos fazem sentir medo. Não há quem nunca enfrentou alguma situação assim? Se não foi com você, foi com seu (a) amigo (a), vizinho (a) ou conhecido (a). Nos causa medo também a postura de uma sociedade que se posiciona contra a vida de bebês anencéfalos. Por que mata-los? Quem realmente pode decidir sobre quanto tempo as pessoas devem viver? É certo que Cristo nos libertou, mas parece que continuamos à mercê de uma sociedade que decide quem deve nascer, quem deve viver e quem deve morrer. Realmente, a inversão de valores nos causa medo. Nestas horas, sentimos que as vozes proféticas se calam. Isso nos causa medo. O medo dificulta viver verdadeiramente a própria fé, ou seja, enquanto somos medrosos, ficamos paralisados, trancafiados e nada testemunhamos. Sem perceber, nos tornamos até coniventes com certas situações. Quem poderá acreditar em nós e nos nossos discursos? E como resolver o problema dos medos pessoais? É aí que nos damos conta que os medos devem ser encarados juntos e partilhados em comunidade. Com o apoio uns dos outros e a ação do Deus que se manifesta vivo no meio de nós, podemos certamente superar todos nossos medos. A certeza da presença do Deus vivo, no centro de nossas vidas, não somente afugenta nossos medos, mas nos devolve a alegria, tornando-nos instrumentos de sua paz e de sua misericórdia, para podermos agir profeticamente contra tudo o que ameaça a vida das pessoas. Para isso somos guiados pelo Espírito, dom do seu amor que cria e renova todas as coisas. A vitória de um aparentemente “derrotado” permite que aqueles e aquelas que se sentem ameaçados e perseguidos, possam tomar um novo vigor e não somente esperar por dias melhores, mas, com coragem, lutar para que isto aconteça.
           As primeiras comunidades acreditavam que vivendo a fé de forma solidária e comprometida, estavam colocando no centro de suas vidas o projeto de Deus, ou seja, estavam fazendo a diferença. Eis, portanto o diferencial da nossa vida comunitária cristã, em meio à realidade de medo e incertezas que tantas vezes nos cerca: a fé no Deus que se manifesta vivo em nosso meio. Por isso que precisamos aprofundar sempre mais a nossa fé com todos os meios que a fortalecem e amadurecem. Chega de fé ingênua e superficial! Temos um testemunho a dar, mas precisamos estar convictos de que isso de fato vale a pena. Quem agiu em nossas vidas é digno de fé: por ser Deus e por ser fiel. Foi assim que ele sempre se apresentou. A vivência da fé exige um testemunho pessoal de vida, mas “é também eclesial, pois a fé da Igreja precede, gera e alimenta a nossa fé”. Sabemos, portanto, que não estamos sozinhos e que a nossa caminhada na fé é resultado de um longo processo. Isso nos faz recordar os nossos pais – que são nossos primeiros catequistas; os próprios catequistas eclesiais - com seu testemunho de fé e dedicação; Os sacerdotes, religiosos, religiosas e tantas outras pessoas que passaram por nossas vidas e continuam nos ajudando a viver esta fé plural, aberta, dialogal e, portanto, respeitadora e ministerial, como testemunho do que Deus fez em nós. Onde quer que estejamos, somos plurais, ou seja, eclesiais - isso é lindo e, ao mesmo tempo, comprometedor. “A nossa fé seja prática, coerente; nenhum contraste entre a fé que professamos e a conduta que levamos”, dizia São João Calábria. Queremos concluir com parafraseando São Tomé: Nosso Senhor e nosso Deus, nós cremos, mas, por favor, aumenta a nossa fé!
Muito axé a todos e todas!
Pe. Degaaxé

sábado, 7 de abril de 2012

EXPERIÊNCIA QUE GERA VIDA NOVA

Alegrai-vos, pois este é o dia que o Senhor fez para nós! O anúncio da ressurreição de Jesus é um convite à alegria, alegria da vida que vence a morte, alegria amor que vence a dor e se torna companheiro no caminho, reacendendo esperanças. Os primeiros discípulos ao comunicar este acontecimento, partiam da existência humana de Jesus, ungido por Deus para uma missão, que a desenvolve fazendo bem a todos, curando todos os que estavam possuídos pela mentalidade contraria ao projeto de Deus. Possibilitou experiência plena de sentido aos que deveriam ser suas testemunhas e, mesmo diante da morte injusta, que os abalou duramente, a vitória da vida lhes dá razão de ser discípulos missionários.
Se Cristo não tivesse ressuscitado, de que adiantaria o discurso dos discípulos? Certamente cairia num vazio sem sentido. Inclusive, depois da morte de Cristo, os discípulos já tinham até voltado cada um para os seus afazeres e desfeito o grupo. Não valeria a pena insistir com alguém que frustrou a expectativa de todos e todas.
 Mas hoje, juntamente com as mulheres, somos convidados a uma alegria sem fim. Jesus ressuscitou e permitiu que as mulheres fossem as primeiras a testemunharem o fato. Depois do aparente fracasso, que foi a sua morte, Ele possibilita por primeiro, a experiência de contemplação de sua vitória a quem tinha sua história negada, por ser vitima de uma sociedade machista, excludente e elitista: as mulheres. Estas se tornam as primeiras testemunhas da vitória da vida sobre a morte e assumem na comunidade a vigilância terna e materna para que a vida seja garantida. Só o amor explica.
É neste sentido que queremos voltar a nossa atenção para dois outros personagens diante do sepulcro vazio: Pedro e o discípulo amado (provavelmente seja o apóstolo João). Eles correm juntos para conferir o fato, mas o discípulo amado chega primeiro. É assim o amor: chega primeiro em tudo. “faz acelerar os passos na busca dos objetivos”. Quem ama cuida, antecipa-se nas apreciações de carinho e no encontro da fé. É capaz de perceber, por primeiro, as transformações ao redor, porque ele mesmo tem seu coração transformado pela experiência de ser e sentir-se amado. A experiência da ressurreição é justamente a experiência do amor intenso de Deus que nos escolhe a servi-lo e nos transforma por inteiro em testemunhas do amor que gera vida, fazendo com que vençamos os obstáculos que surgem na caminhada, superemos os preconceitos nas relações de gênero, vençamos o medo que obscurece a vida e vivamos intensamente a fraternidade. É assim que o ressuscitado se faz presente em nossa caminhada. A figura de Pedro é símbolo da luta constante para vencer o cansaço próprio de quem se dedica à missão; de quem é tentado pelo desânimo, mas que supera pela experiência acumulada e intensa de vida, tão necessária para guiar, aconselhar e conduzir. Nos espelhamos nos dois para sermos testemunhas alegres da ressurreição.
Assim é em nossa caminhada existencial: só quando amamos de verdade é que podemos fazer a experiência do Deus vivo e vencedor. Só quando valorizamos a presença das pessoas com o seu jeito diferente de ser é que reconhecemos a presença viva de Deus. Nesta caminhada, cada um tem o seu processo e deve ser respeitado assim, pois Deus não faz distinção de pessoas e é seu desejo fazer-se sentir a todos e todas. Há quem tem facilidade de crer em sua presença e deixar morrer certas resistências que não deixam caminhar. Há outros que não só tem dificuldades para crer, mas também dificultam a fé dos outros. Mas todos e todas são chamados a uma experiência de encontro com o Ressuscitado para se transformarem em suas verdadeiras testemunhas.



Feliz e abençoada Páscoa!

Pe. Degaaxé


sexta-feira, 6 de abril de 2012

PAIXÃO E CRUZ EM VISTA DA VIDA PLENA

            Refletir a paixão de Cristo é ocasião oportuna para refletir o mistério da dor e do sofrimento humano e perceber aí a solidariedade de um Deus que quis passar pela mesma situação para dar um sentido totalmente novo ao nosso sofrer. Nesta ótica, o sofrimento humano não é só errado, mas está superado. Cristo, em seu gesto de amor, quis passar por isso e nos libertar de uma vez por todas. A sua decisão, o seu gesto foram aceitos pelo Pai.
A cruz, que era vergonha para os judeus e loucura para os não-judeus, tornou-se, para os cristãos, sinal de vida e salvação. É um símbolo que ostentamos não por causa do sofrimento e morte de um Deus, mas pela sua decisão de nos conduzir à vida plena, passando pela cruz. Ao assumir a cruz, Jesus assumiu os sofrimentos da humanidade inteira, que são os crucificados da história: os doentes que dependem do serviço público de saúde (as longas filas, o descaso, as frustrações pela falta de atendimento ou pelo mau atendimento, etc), os indígenas desaldeados e desrespeitados, as mulheres exploradas moral e sexualmente, os afrodescendentes vítimas do racismo e das inúmeras negações históricas, os mendigos queimados em praças públicas por causa da intolerância, o estado de miséria e indignidade no qual se encontram os pobres, etc.
É preciso imitar os gestos de Cristo em sua entrega e doação levando em conta alguns pontos bem concretos: a) a sua vida Kenótica: toda a sua vida foi Kenosis (esvaziamento), do nascimento à morte, resistindo a toda espécie de louvação e individualismo porque ele tinha sempre presente o bem dos demais; b) seu engajamento profético: Jesus é o profeta por excelência, que se posiciona em favor das vítimas e contra o sistema estabelecido, faz opção pelos últimos, mesmo que incomode aos poderosos; c) sua fidelidade ao Projeto de Deus: Ele tinha duas paixões: o Reino de Deus e o Deus do Reino – foi tentado a renunciá-las por causa de conveniências, mas a sua firmeza e a convicção de que estava fazendo a coisa certa o mantém fiel até o fim, resultando no sacrifício da própria vida.
Jesus apresenta a cruz como condição para ser sua discípula e seu discípulo. Ele afirma: ‘Quem quiser me seguir, tome a sua cruz a cada dia e me siga. São três os passos a serem dados na identificação com aquele que desejamos seguir: a) a renúncia de si implica mudança de mentalidade, sem a qual é impossível acolher a vida nova que Cristo nos traz; b) tomar a cada dia a própria cruz é assumir a própria história com seus limites e dificuldades, sem murmuração nem comodismo, mas na busca de superação e na compreensão das dificuldades alheias; c) e siga-me é o apelo de Jesus que se apresenta como caminho, verdade e vida, para que a cruz que carregamos tenha verdadeiro sentido, justamente porque ele carrega conosco.
Concluo, dizendo que nossa referência nunca é a cruz pela cruz, mas como meio e expressão de comprometimento em vista da vida nova da Ressurreição – a maior vitória do mundo, na expressão da minha prima Rosana. A páscoa de Cristo consistiu no sacrifício e doação pelas pessoas. A partir dele, a verdadeira páscoa só acontece para nós quando fazemos da vida entrega e doação pelos demais.

Feliz Páscoa!
           Pe. Degaaxé  

quarta-feira, 4 de abril de 2012

5 HÁ RAZÕES PARA SE TER ESPERANÇA?

           No artigo anterior, mostrei como Deus pode transformar uma situação de morte em situação de vida, fracasso em vitória, desgraça em graça. Isso aumenta a certeza de que ele não quer o mal nem criou o mundo mau. É sinal também de que, apesar de tantos males, há razões para se ter esperança. “Só um Deus que nos ama sem limites e que, definitivamente, tem poder para livrar-nos do mal pode assegurar de verdade nossa esperança. Não obstante, então é preciso mostrar que, apesar de todas as aparências, a presença do mal no mundo não contradiz a fé nesse Deus”.[1] Avida cristã tem a tarefa de mostrar a coerência de uma fé que apóia sua resposta na confissão de um ‘Deus-amor’, mas que ao mesmo tempo não pode negar a imensa ferida do mal, presente no mundo.[2] Disso não se deve culpar a Deus, mas reconhecer o que os atos humanos maus são capazes de fazer com o mundo que ele criou. Diante de alguns males no mundo, podemos até desconhecer as suas causas, mas não podemos buscar numa realidade extramundana nem tampouco em Deus.
           Sendo assim, deve haver naqueles e naquelas que se dizem discípulos e discípulas de Cristo, os mesmos sentimentos e disposição que havia em Jesus Cristo, pois “o sacrifício de sua vida produtora de vida e ‘fruto’ é a lei também do discipulado”.[3] Tudo nos leva a crer que Jesus confiou em que, apesar de tudo, Deus estava com ele: que, embora a eliminação empírica desse mal concreto não fosse possível dentro da história, isso não significava abandono e muito menos maldição. Lucas soube expressá-lo, pondo em sua boca estas palavras reveladoras: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’ (lC 23, 46). E a Epístola aos Hebreus não teme qualificar isso como duro e real aprendizado, ‘com gritos e lágrimas’ (Hb 5, 7-9). Mas a ressurreição, ao ser reconhecida como já plena e presente, resgatando Jesus do mal, aparece em toda sua profundidade como resposta de Deus ao problema do mal.[4] Contra toda a esperança é preciso professar a fé no Deus que não nos abandona e não se cala.
            O sofrimento, morte e ressurreição de Jesus retratam que é preciso reorientar nossa vontade e liberdade a fim de que cumpram sua verdadeira finalidade: levar-nos a experimentar a plena realização da nossa existência, segundo a vontade daquele que nos criou. Não temos o direito de por em dúvida que, apesar de nossas maldades, existe um Deus Abbá, que está voltado para nós com toda a força e a atividade de seu amor compassivo e libertador. É Deus e não nós o primeiro empenhado na luta contra o mal, e que por isso é ele quem está contínua e incansavelmente solicitando nossa colaboração. Um Deus que se manifesta compadecendo-se de um povo oprimido e solicita a colaboração de Moisés.[5] Ele é um Deus Antimal que, ao longo de todo o processo histórico, conseguiu revelar-se como Aquele que, criando por amor, sempre acompanhou com carinho e ternura a luta humana contra o mal, assegurando o sentido da existência e fundando a esperança da realização definitiva. Um “Deus que Jesus de Nazaré anunciou, de palavra e de obra, de vida, morte e ressurreição, com o símbolo talvez insuperável de Abbá: Deus ‘Pai-Mãe’”.[6] Temos, portanto, muitas razões para ter esperança, a pesar do mal que não dá trégua. Aqui vale aquela frase popular tão badalada: “não diga a Deus que você tem um grande problema; diga ao problema que você tem um grande Deus”.

Modjumbá axé!
Pe. Degaaxé



[1] TORRES QUEIRUGA, A. Esperança apesar do mal. p. 125s.
[2] Cf. Id., Ibid., p. 129s.
[3] GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Por que sofrer?., p. 146.
[4] Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Esperança apesar do mal. p. 149.
[5] Id., Ibid., p. 150s.
[6] Id. Repensar o mal. p. 288.