segunda-feira, 26 de março de 2012

4 REAÇÃO DISTINTIVAMENTE CRISTÃ AO PROBLEMA DO MAL

            Após termos interrompido a sequência de artigos sobre o mal, para podermos apresentar a síntese do Congresso de Entidades Negras Católica, voltamos ao nosso assunto. É bom lembrar que nos aproximamos da Semana Santa e nela se misturam o Mistério de Deus em seu amor por nós e o mistério do mal moral, fruto da nossa resposta a Ele. Embora Jesus tenha vencido o mal e a morte, parece triunfar em nossa vida aquele que alimentarmos mais. Então, vamos para o nosso 4º passo, esclarecer qual é deve ser sempre a resposta específica da nossa identidade cristã ao problema do mal. 
           Na visão cristã, o mundo é visto como um lugar bom e digno, em vista da realização da pessoa. Neste mundo, entes livres, estando às voltas com as tarefas e os desafios da sua existência em um ambiente comum, podem tornar-se ‘filhos de Deus’ e ‘herdeiros da vida eterna’. Santo Irineu nos ajuda a pensar teologicamente o propósito continuamente criativo de Deus para o ser humano quando diz que este “ser humano foi feito como uma pessoa à imagem de Deus, mas ainda não foi trazido como um agente livre e responsável à semelhança finita de Deus, que é revelada em Cristo”[1]. Isso justifica, em parte, um agir humano em desacordo com a vocação a que é chamado.
           O fato da existência do mal, torna difícil uma mudança de postura por parte de muitos céticos e gnósticos a respeito da ideia de um Criador que, em seus cuidados, é Pai-Mãe. Como sustentar, então, a fé num Deus todo-poderoso e perfeitamente amoroso diante da existência do mal?[2] Brota espontânea outra pergunta: uma criança inocente, que sofre, merece a dor como justo castigo? Georg Büchner qualificou o mal de ‘pedra de toque do ateísmo’, e autores sensíveis como Dostoievski e Camus veem no sofrimento inocente talvez a mais terrível das figuras do mal e a impossibilidade de crer em Deus. O próprio Camus chegou inclusive a afirmar: “Quando vejo uma criança inocente sofrer, não posso crer em Deus”[3]. Epicuro já colocava a questão: “ou Deus pode e não quer evitar o mal, e então não é bom; ou quer e não pode, e então não é onipotente”[4]. Este dilema de Epicuro é hoje anacrônico, pois vem de um pensamento já passado e carece de sentido. Em nenhum caso seria isso coerente com um Deus, confessado como bom e onipotente[5]. Mas deve-se cuidar também para não ir pro outro extremo, como se expressa muito bem R. A. Ullmann:
‘Afirmar que os males, as injustiças, os sofrimentos e as contrariedades devem ser acolhidos, na esperança de que Deus, um dia, há de recompensá-los, neste mundo ou no outro, pós-morte é refugiar-se na utopia, quando não toma feição de doentio masoquismo (...) Para não poucos, isso é drogar-se com o ópio de uma fé inane. Prático e racionalista, o ser humano da atualidade quer soluções concretas e imediatas para seus problemas’[6].
            Que tudo isso ganhe um novo sentido e valor, em vista do que virá (Rm 8, 18), não tenhamos dúvida, mas não devem ser buscados como valor em si e como exigidos por Deus[7]. “É problemático afirmar que o mal (sofrimento) das criaturas constitui um meio para fins superiores”[8]. Temos que admitir que não existe um valor tal que possa justificar uma ação moralmente má. O fim não justifica os meios. Deus não quer nem pode querer o mal moral, porquanto seria conivente com ele. Muito menos pode querê-lo como meio para realização de qualquer valor que seja[9]. Reforça esta ideia o autor J. Hich, quando afirma: “De uma coisa os cristãos estão certos: o mal está em oposição direta à vontade de Deus. Neste sentido, o clímax da história do mal é a própria crucificação de Cristo: um sofrimento extremamente injusto e manifestação de rejeição violenta e homicida do Messias Deus”[10]. A morte de Cristo é vista paradoxalmente, pois, por um lado, foi a pior coisa que já aconteceu: a morte do Filho divino; por outro, foi a melhor coisa que já aconteceu por se tratar da salvação do ser humano. Assim o mal supremo se tornou o bem supremo. Mas é bom lembrar que o sofrimento como valor em si está superado. Nisto consiste o diferencial cristão em relação ao mal[11].
            O sofrimento e a crucificação de Cristo - o maior dos males - não deve ser entendido como compensatório, algo querido por Deus, mas resultado de seu engajamento profético, na revelação do amor e da misericórdia de Deus. Segundo o autor F. Varone, ao invés de dizermos: “Jesus morreu por nossos pecados”; é preciso dizer que “Jesus morreu por causa de seu combate profético levado até o fim”[12]. Ele parece morrer como um fracassado, mas, para além do fracasso, é preciso descobrir o valor salvífico e universal de sua morte[13]. “A paixão e morte de Jesus não devem ser relacionadas apenas com as ideias de expiação e vicariato, mas também com o sofrimento e miséria da comunidade no mundo, e deste ponto de vista não tem sentido exclusivo, mas inclusivo, protótipo”[14].
          Jesus realiza o misterioso servo de Deus de Isaías, não por substituição e compensação formal, mas antes pelo investimento concreto de sua prática a serviço da libertação de todas as pessoas que sofrem. O autor F. Varone procura desmitificar a falsa compreensão do sofrimento de Cristo, lembrando que de modo algum é um valor em si[15]. Segundo ele, Jesus não procurava sofrer, mas viver uma prática positiva, mesmo se devesse sofrer cruelmente por causa dela. Jesus não devia nem queria sofrer em nosso lugar, mas antes investir sua vida até o fim para nos salvar. O sofrimento é para Jesus a ocasião de revelar o amor que tem para conosco e, para nós, a possibilidade desconcertante de o reconhecer[16]. Assim a direção da fé está centrada no sacrifício do Cristo e isso quer dizer na prática histórica levada até a morte e desembocando na ressurreição, prática em que Deus inaugurou e revelou a finalidade infinita da existência humana[17]. Portanto, “visto que a morte e ressurreição de Jesus estão relacionadas, estar incluído no destino de Cristo implica também na participação de ‘sua vida’ (2 Cor 4, 10)”[18]. Permanecem estas provocações para que repensemos o significado do sofrimento e a morte de Jesus e para que, como ele, nos empenhemos pela causa do Reino de Deus na luta contra todo tipo de mal, nem que isto nos custe a vida. Nos falaremos, então, no próximo item. Um bom início de Semana Santa!

Modjumbá axé!
            Pe. Degaaxé





[1] Id., Ibid. p. 694
[2] Cf. Id., Ibid., p. 691.
[3] CAMUS apud ULLMANN, R. A. Op. cit., p. 17. Comunga com esta mesma ideia o autor TORRES QUEIRUGA, A. Esperança apesar do mal. p. 124. 
[4] TORRES Queiruga, Esperança apesar do mal. p. 124. O autor possui uma recente obra, intitulada Repensar o mal, na qual traz o teorema de Epicuro melhor desenvolvido: ‘Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, além disso, é impotente; se pode e quer – e isto é o mais seguro -, então de onde vem o mal real e por que não o elimina?’ (EPICURO apud TORRES QUEIRUGA, A. Repensar o mal. p. 18).
[5] Id., Ibid., p. 130s.
[6] ULLMANN, R. A. Op. cit., p. 24. Ver também GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Por que sofrer? p. 172.
[7] GERSTENBERGER, erhard et SCHRAGE, W. Por que sofrer?. p. 179.
[8] ULLMANN, R. A. O mal., p. 24.
[9] Cf. Id. Ibid., p. 25
[10] HICH, J. Op. cit., p. 691.
[11] Cf. HICH, J. Op. cit., p. 695.
[12] VARONE, F. Esse deus que dizem amar o sofrimento. p. 57. “Seus sofrimentos decorrem de forma quase consequente e inevitável do centro de sua mensagem e vida (...) Sua paixão está inseparavelmente relacionada à sua obra”. (GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Por que sofrer? p. 152).  
[13] Cf. Id., Ibid. p. 133.
[14] GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Op. cit., p. 147.
[15] Cf. VARONE, F. Op. cit., p. 271.
[16] Cf. Id., Ibid. p. 137s.
[17] Cf. Id., Ibid. p. 253.
[18] GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Op. cit., p. 148.

quarta-feira, 21 de março de 2012

SÍNTESE DO 7º CONGRESSO NACIONAL DE ENTIDADES NEGRAS CATÓLICAS - CONENC

             Peço permissão aos amigos e leitores para interromper nossa reflexão sistemática sobre a existência do mal para que eu possa blogar esta síntese que acabo de fazer sobre o sétimo CONENC. Um evento organizado pela CNBB, que acontece a cada dois anos e que reúne grupos de pastoral afro de todo o Brasil. Estivemos por três dias em formação intensiva e daquilo que conseguir acompanhar, apresento para todos e todas agora a riqueza de reflexão que foi o VII CONENC, acontecido em Londrina, entre os dias 09 e 12 de fevereiro:
A minha participação no VII CONENC foi mais do que a de um observador; foi a de um militante da Causa. Poder conviver com agentes da pastoral afro de todo o país e perceber o desejo de dar o melhor de si em vista da vida e da saúde do povo negro, foi contagiante e emocionante, simplesmente espetacular. Como agentes, somos convidados a atuar em vista da transformação das diversas realidades onde se encontra o nosso Povo. Para isso, o CONENC nos dirigiu o forte convite de resgatarmos a ousadia profética, nos empenharmos na conversão pastoral a partir da renovação das nossas estruturas. Parafraseando Aparecida, é preciso abandonar as antigas estruturas, linguagens e estratégias, se elas não correspondem mais.
            A memória dos Ancestrais foi uma constante no encontro, tendo presente que um povo sem memória perde sua identidade. Estávamos conscientes de que sem o resgate da auto-estima da população negra não se pode dar visibilidade a nenhuma ação pastoral neste campo. O testemunho dos que nos antecederam nos ensinou a resistir. Neste sentido, sinto que enquanto agentes, não podemos ter medo de fazer denúncias, sob pena de faltarmos gravemente com o compromisso profético da nossa Igreja. Um dos assessores, o antropólogo Altair, lembrava que a autoestima da nossa gente está massacrada e que, muitas vezes, nossas estruturas acabam se calando ou caminhando lado a lado com esta situação. É preciso ter coragem de propor ações afirmativas e avalia-las constantemente, participando nos programas de políticas públicas para interferir nos programas sociais e no rumo das decisões.
            A minha impressão é de que havia e há uma preocupação muito grande em manter a comunhão eclesial, em tornar conhecidos documentos da Igreja que dão orientações para a ação que traduz um cuidado pastoral que já vem de muito tempo. Temos uma história riquíssima que é preciso resgatar e valorizar, pois assim estaremos ajudando sempre mais a Igreja a cumprir sua finalidade como continuadora da missão de Cristo. Dentre tantas coisas que o brilhante Oscar Beozo nos falou, quero resgatar esta coragem profética da Igreja, que se diz Católica por ter assumido o compromisso de acolher a diferença, a diversidade. Estamos ajudando a Igreja a se tornar verdadeiramente católica, a acolher toda a diversidade com otimismo e alegria. Sem isso estamos mutilando a Igreja. Deus se revela na riqueza da diversidade e quando suprimimos a diversidade estamos suprimindo um pedaço de Deus.
            O assessor para a liturgia, Hernaldo Farias, nos ajudou a aprofundar o sentido da liturgia da Igreja, lembrando que é na liturgia que os membros da Igreja se tornam Corpo de Cristo. Quanto mais buscamos conhecer o que celebramos mais a nossa participação será plena, consciente, ativa e frutuosa. Quem transforma a liturgia em fonte e cume de sua vida é estimulado a viver a caridade do próprio Cristo, transformando sua vida e o seu cotidiano. Quem celebra o mistério de Cristo não retorna ao cotidiano da mesma forma. No espírito da Sacrossanto Concilium (SC 37-40), a liturgia deve ser feita segundo o espírito, as tradições, mentalidade, costumes e necessidades de cada povo. Temos todo o direito de ter uma liturgia afro-brasileira. Salvo o rito romano, rufem-se todos os tambores. Tem denuncia maior do que fazemos da morte do inocente Jesus condenado? Perguntava o Beozo. Em última análise, podemos utilizar elementos da cultura afro sem destituir a liturgia do seu essencial.
             Este CONENC trouxe muitos elementos para que nós, agentes de pastoral, possamos levar adiante a missão com um maior entusiasmo, certos de que não estamos sozinhos e que podemos contar com uma Igreja que, em muitos espaços, já se revelou comprometida com a Causa da Comunidade negra. A partir de realidades apresentadas pelo antropólogo Altair e pelas intervenções dos (das) agentes, percebemos a necessidade de combater o racismo institucionalizado; auxiliar na consolidação dos direitos adquiridos pela população negra; conscientizar os negros e negras de sua identidade e os não-negros, da validade das reivindicações da população negra; ampliar a ação social no interior da própria Igreja, fazendo com que os avanços da esfera civil ressoem nas comunidades; Estabelecer parcerias com demais organismos que são solidários na luta; Os quilombolas estão sendo cada vez mais perseguidos e isso causa preocupação. Precisamos estar atentos a esta realidade e ser voz dos que não tem voz e nem vez.
E como foi próprio do tema do CONENC, o Pe. Ari nos fez refletir sobre os desafios emergentes para a nossa caminhada pastoral:
1º Desafio – disposição de enfrentar uma realidade considerada provocativa ao sujeito. Entender a nossa identidade enquanto agentes de pastoral e a identidade da nossa missão implica em nos compreendermos como referenciais na sociedade e na Igreja. Fazer da questão da identidade como nossa ferramenta de luta;
2º defafio - Aprofundar o diálogo com o movimento social negro, buscando descobrir dimensões que poderiam enriquecer nossos processos. Compreende também aproximação da literatura, dos processos e metodologias consolidados que pode enriquecer a caminhada. O diálogo pode ser permanente, envolvendo as estruturas/instituições. Pode ser a partir de uma situação específica. É uma troca;
3º desafio - Apoio às lutas de outros irmãos e irmãs que vivem situações de exclusão e violência. Implica em formar uma rede solidária, pois temos muitas situações que nos unem. Temos uma palavra a dar para a sociedade – resgate da ação solidária;
4º desafio - Buscar a formação–excelência. A conjuntura exige agentes bem preparados. A preparação vai além do discurso, mas exige metodologia conteúdos, diálogo;
5º desafio - Formação de novas lideranças nos diversos campos da atuação. O processo formativo deverá ser permanente. Compreende também uma revisão metodológica permanente. Permanente diálogo e constante presença na missão da Igreja;
6 desafio - Sentido da eclesialidade. Estamos ligados a uma igreja e somos responsáveis por ela;
7º desafio - Ter sempre presente a mística e a espiritualidade que nos caracterizam;
8º desafio - Não esquecer as demandas históricas e esquecidas pela sociedade e pelo Estado: quilombolas, moradia, saúde da população negra;
9º desafio - Atuação em redes e aprender a utilizar os recursos das mídias sociais.
            Como se vê, não são poucos os desafios que nos inquietam. Diante disso, enquanto agentes, representando os diversos regionais, elegemos prioridades que devemos levar adiante segundo as realidades onde atuamos. São elas: 1. A necessidade de articulação nos regionais. Para isso, encontro nos regionais; 2. formação integral do agente de pastoral; 2.1 Em termos de conteúdos e metodologia – preparar os agentes para a missão; 2.2 Formações específicas científicas, conhecimento de documentos; 2.3 Formação teológica litúrgica especifica; 2.4 Formação na linha da cultura e identidade negra; 3. Preparação de subsídios: bíblicos, metodológicos, conteúdos; 4. Articulação com outros organismos: pastorais sociais, entidades de Estado, movimento social; 5. Investir na comunicação: redes, banco de e-mails; 5.1 Circulação maior de notícias de eventos; 6. Rearticulação de grupos de trabalho: mulheres, educação, liturgia, formação permanente.
            Quero concluir, dizendo que valeu a experiência e que temos muito a construir, a superar, a descolonizar. Mas, acima de tudo, reconhecer que a nossa história é realmente rica e bela. Assim como a Igreja não existe para ela mesma e sim para ser presença no mundo, acolhemos a mensagem final do VII CONENC como um forte apelo a retomarmos nossas atividades com ousadia e profetismo, vivendo a espiritualidade da resistência junto a nossas comunidades, conhecendo melhor a liturgia da Igreja e ousar dinamizá-la com um estilo afrodescendente, evitando o sincretismo e a dupla pertença; descentralizando nossas atividades, através de uma articulação forte no Regional. Conscientizarmo-nos de que as parcerias são fundamentais para termos um maior alcance de nossas metas. Repensar nossas linguagens, políticas e estratégias, com relação ao Povo negro e à própria sociedade. É preciso relevar as limitações próprias das pessoas envolvidas no processo e nos darmos conta de que somos mais fortes quando atuamos juntos. A graça de Deus nos ajude a viabilizar os compromissos assumidos em vista do bem do nosso Povo negro.

Modjumbá axé!
Pe. Degaaxé

domingo, 18 de março de 2012

3 AS CAUSAS DA EXISTÊNCIA DO MAL

              Para quem está nos acompanhando, esta é a terceira parte da nossa reflexão sobre a existência do mal. Neste item, queremos ter presente que o único princípio que existe no universo é Deus e este princípio é infinitamente bom. Todas as coisas que existem estão numa situação de níveis de bondade, ou seja, tem uma bondade ontológica intrínseca – faz parte interna do ser. Todas as coisas são feitas do não ser (Deus fez tudo do nada) e todas as coisas são boas.   Se Deus quis fazer o mundo e o ser humano com livre arbítrio, a liberdade é inevitável e o mal é possível. A causa do mal é a vontade e o livre arbítrio. O ser humano se afasta de Deus porque ele quis. O mal existe porque o ser humano quis. O ser humano, sendo feito com capacidade de amar, é capaz de amar também aquilo que o afasta de Deus: a soberba. Para Agostinho, o mal não é querido nem criado por Deus, mas é real e deve ser considerado. Mas permanece a grande interrogação: se Deus não quer o mal, por que ele permite que o mal exista?[1] Não é uma pergunta tão fácil de responder, mas que precisa de uma solução.

Num primeiro momento, interessa-nos aquilo que a formulação teológica sempre tematizou: a ideia de Deus como ‘Antimal’, e mostrou-se no esforço por manter a coerência de um Deus que, criando por amor, de nenhum modo poderia ser cúmplice do mal[2]. “Deus criou boas todas, mas permite o mal, porque em seu poder infinito ele sempre poderia criar algo melhor”[3] e também porque respeita as decisões humanas. Embora se reconheça que nem todos os males dependem das decisões humanas, como: tempestades, furacões, enchentes, etc. Mas queremos fixar nossa atenção sobre o mal moral, aquele que, para o cristianismo, tem raiz na experiência do pecado. E o ser humano só percebe a sua gravidade porque Deus se revelou em sua bondade, como bem expressa C. I. Gonzalez:

‘Esta experiência negativa só é conhecível em si e na sua profundidade à luz da experiência positiva do Deus que se revela. O cristão só compreende em profundidade a raiz do pecado quando experimentou em Cristo, pela ação do Espírito, a salvação que vem de Deus. O pecado é um fato decorrente do uso irresponsável da liberdade humana’[4].

Em seu livro intitulado De libero arbítrio, ao qual acrescentou mais tarde a expressão  voluntatis, Santo Agostinho tem muito presente o que foi afirmado acima e reforça dizendo que a liberdade de escolha constitui o pressuposto para o agir moral, assim para o bem como para o mal, para a responsabilidade do ser humano e a recompensa divina. A vontade boa obtém a coroa; a má o castigo[5]. Comunga com esta ideia também J. Hich quando afirma que

‘O pensamento cristão sempre considerou o mal moral em sua relação com a liberdade humana e a responsabilidade. Ser pessoa é ser um centro finito de liberdade, um agente (relativamente) livre e autocontrolado responsável por sua própria decisão. Isso envolve ser livre para agir tanto erradamente quanto para agir corretamente’[6].

Poder decidir é característica fundamental de pessoas livres. No entanto, esta característica traz também à pessoa a possibilidade de agir errado, ou seja, de pecar, pois é livre, limitada e finita. Portanto, em se tratando de pessoas, é impossível a possibilidade do não erro ou do não pecado em seu agir. Uma enorme quantidade de dor humana surge da desumanidade ou da incompetência culpável da humanidade. Na medida em que todos esses males são oriundos das falhas humanas e do seu mal agir, a sua possibilidade é inerente à criação de pessoas, habitando um mundo que as apresenta com escolhas reais, seguidas por consequências reais[7]. Mas voltando à questão do Deus que é bom e, ao mesmo tempo, permite o mal, o autor R. A. Ullmann responde que este Deus pode perfeitamente permitir o pecado. Nada mais. O pecado não faz parte integrante da vontade humana criada por Deus. A vontade é uma faculdade capaz de produzir uma ação; sendo livre, pode igualmente não produzi-la. A escolha do bem ou do mal é somente do ser humano. Excluído fica Deus como cúmplice do mal[8]. Portanto, “a origem do mal moral repousa para sempre encerrada no mistério da liberdade humana”[9]. Mas sabemos que é possível a superação do que chamamos mal, pois enquanto cristãos, temos as armas adequadas. É o que veremos no próximo item. Até lá!



Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé





[1] HICH, J. In: BONJOUR, L. & BAKER, A. Filosofia: textos fundamentais comentados. p. 691.  
[2] Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Repensar o mal. p. 11.
[3] Trecho do material para o exame De universa sobre a Criação e o problema do mal.
[4] GONZÁLEZ, Carlos Ignacio. Ele é a nossa salvação, p. 37.
[5] ULLMANN, R. A., Op. cit. p. 17.
[6] HICH, J. Op. cit., p. 692.
[7] Cf. HICH, J. Op. cit., p. 693.
[8] Cf. ULLMANN, R. A. Op. cit. p. 26.
[9]  HICH, J. Op. cit., p. 693.

terça-feira, 13 de março de 2012

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE ALGUMAS CONCEPÇÕES DE MAL

             Na continuidade do nosso tema, quero analisar concepções de alguns autores e suas implicações. O problema do mal sempre inquietou as gerações de todos os tempos por se tratar de um mistério e, portanto, há sempre o que dizer e o que pesquisar. O mal é sempre algo não-positivo, que todos querem evitar, mas que nem sempre conseguem. Trata-se de uma deficiência, uma privação e uma desordem de algo originalmente harmonioso e bom. Muitos autores se ocuparam deste assunto e queremos agora analisar alguns, brevemente.
 Os escolásticos definiam o mal como um parasita do bem. Entre os medievais, tratava-se de ausência de uma perfeição que deveria estar presente na natureza, em determinado ser ou faculdade de um ser. Na verdade o mal é aquilo que contraria um plano determinado ou desarruma uma ordem estabelecida de coisas a que estamos habituados. Assim sendo, o mal é o oposto do bem[1].  O autor G. Büchner, citado por Torres Queiruga, diz que “pode-se negar o mal, porém não o sofrimento”[2].  Esta colocação acentua que não se pensa o mal como algo abstrato ou distante, mas muito concreto e existencial que, mesmo que não se queira chamar de mal, nem por isso ele deixa de existir. Reforçando esta ideia, o autor A. Torres Queiruga continua: “O ‘mal’ é, em seu significado mais elementar e em sua mais inegável realidade, aquilo que experimentamos como o que subjetivamente ‘não queremos’ e do que objetivamente pensamos que ‘não deveria ser’, e que, bem por isso, rejeitamos e procuramos eliminar ou, pelo menos, suavizar”[3]. Este mesmo autor cita Pierre Bayle, referindo-se ao escândalo do mal. Para ele, “é absolutamente irreconciliável no nível da razão. Ele percebe com acuidade os dois extremos em disputa. Por um lado, a onipotência e (ainda menos) a bondade de Deus. Por outro, a miséria humana: ‘o homem é mau e infeliz’”[4]. E, como se percebe, este autor não vê bondade no ser humano, mesmo relacionando-o com Deus, seu criador. Ele também não vê expectativa na luta contra o mal e no esforço para se evita-lo.
A nossa reflexão continua e agora citamos o autor Leibniz, comentado por R. Ullmann e por A. Torres Queiruga, o qual propõe uma tríplice divisão de mal: o mal físico, o mal moral e o mal metafísico. O mal físico refere-se à ausência daquilo que pertence à integridade natural do ser. Mas por mal físico entendem-se não somente os males materiais, mas também os males que afetam o espírito, como as decepções, a dúvida, a desonra, o remorso. O mal moral reside no desvio voluntário da norma de moralidade, que é a razão, nas ações livremente opostas. Já O mal metafísico, significa a finitude, a limitação da criatura. Em outras palavras, esse mal é a imperfeição original da criatura, que a torna sujeita ao erro, à falta, ao pecado. Nenhuma criatura comporta a plenitude do ser própria de Deus. De acordo com esta ideia, está também o autor Pomponácio, segundo o qual o mal metafísico ou o mal da natureza é inerente ao ser finito e não representa nenhuma injustiça da parte de Deus. Não é possível existirem dois infinitos[5]. É possível refutar em muitos pontos, a opinião destes autores, visto que este ser finito criado por Deus tem sua origem em Alguém bom, ou seja, o ser criado é bom em sua raiz. No caso da finitude, o autor e prof. R. Pich assim afirma: “A finitude implica um espaço lógico para o mal. No entanto, não há uma relação direta entre finitude e maldade. A finitude da nossa vontade não implica que estamos condenados a uma má vontade. A criação só pode ser finita e mesmo finita ela é boa”[6].
Para finalizar este item, não podia faltar também a visão judaico-cristã que, já foi antecedida pelo posicionamento acima do prof. Roberto Pich, totalmente contrária à de Leibniz, Pomponácio, Bayle e outros. Segundo esta visão, o mal, originalmente, não faz parte integrante do mundo, mas é a consequência da autonomia criatural, ou seja, o mal surgiu, historicamente, pelo pecado original. Aqui, é importante citarmos Santo Agostinho, que distingue duas formas de mal: o pecado e o sofrimento. O sofrimento é o justo castigo do pecado cometido pelo ser humano no Éden. O pecado representa o mau uso da vontade livre. Para Santo Agostinho, o mal representa o desencaminhamento de alguma coisa que é boa em si mesma. O universo é bom por ser criação de um Deus bom para um bom propósito. Neste sentido, tudo o que tem ser é bom no seu próprio modo e grau, exceto na medida em que pode ter se estragado ou corrompido. O mal não foi estabelecido ali por Deus, mas representa a distorção de algo que é inerentemente valioso[7]. O prof. Rich recorda, em seu comentário sobre A. Agostinho, que a palavra chave na hermenêutica agostiniana é privação. Uma privação é uma ausência ou uma não realização de um bem que se espera que aconteça em alguma coisa que existe. O ser humano é bom enquanto criado por Deus; não há nada nele que seja ruim. Mas existem bens que podem ser mal utilizados: o mal são aquelas ações nas quais o ser humano se deixa levar e controlar[8].
            Modjumbá axé!
            Pe. Degaaxé





[1] Cf. ULLMANN, R. A. O mal. p. 6.
[2] BÜCHNER, B. apud TORRES QUEIRUGA, A. Repensar o mal. p. 16.
[3] TORRES QUEIRUGA, A. Ibid. p. 16.
[4] Id., Ibid., p. 41.
[5] Cf. ULLMANN, R. A. Op. cit. p. 8s.  
[6] Palavras do Professor Doutor Roberto Pich, durante as aulas da disciplina Questões atuais de História da Igreja à turma do mestrado em Teologia Sistemática.
[7] Cf. ULLMANN, R. A. Op. cit. p. 17.
[8] Professor Roberto Pich, durante as aulas. 

quarta-feira, 7 de março de 2012

A EXISTÊNCIA DO MAL É UM OBSTÁCULO À FÉ NUM DEUS PAI-MÃE?

Olá amigos (as) e seguidores (as)!

Volto a conversar com vocês e desta vez, partilhando uma recente pesquisa que venho desenvolvendo sobre o problema do mal. O presente artigo é só uma parte introdutória para situá-los na questão e orientá-los sobre a verdadeira finalidade de refletirmos sobre o assunto. A grande pergunta que inicialmente nos fazemos é: a existência do mal é um obstáculo para a fé num Deus Pai-Mãe?
            Queremos refletir o problema do mal como resultado da ação livre do ser humano e suas consequências para todo o universo criado. Neste sentido, surgem muitos obstáculos que dificultam o cultivo de uma fé profunda num Deus amoroso e cuidador – Pai-Mãe. Analisando o posicionamento de alguns autores sobre o assunto, percebo que estamos diante de um grande mistério que inquieta e tira a paz. Todas as respostas, até então, foram insatisfatórias, pois o mal, embora não seja desejável, ‘insiste’ em estar presente no cotidiano das pessoas. As pessoas desejam o bem e, quando fazem escolhas, é o mal que se apresenta. Outros questionamentos nos inquietam: se Deus é bom, por que permite o mal? Ou ainda: Por que Deus, sendo bom, não fez o ser humano incapaz de praticar o mal? Estas e outras questões orientam este estudo e, ao seu tempo, terão algumas pistas, na tentativa de resposta.

Deus cria o universo e o ser humano como obra boa porque ele é bom, ou seja, a bondade de Deus resplandece na criação. Na sua essência, o ser humano é bom e tem vontade livre, trazendo consigo o poder de decidir, assumindo as consequências dos seus atos como resposta ao Deus que o criou. Sem dúvida, boas razões teve Deus para criar seres livres. No ato criador, ele quis tornar o ser humano partícipe de seu ser, ao cria-lo à sua imagem e semelhança. Se o ser humano é uma imagem da espontaneidade criadora de Deus, ele necessariamente tem que ser inteligente e livre. Deus não cria marionetes. Por serem criaturas, os seres humanos são limitados em suas faculdades. Devido à liberdade e à razão finitas, pelo menos, não se pode excluir a possibilidade de usar a liberdade para o mal ou de usar mal a liberdade. Sendo assim, as consequências são nefastas. Mas, como nem tudo está perdido, o ser humano é convocado pelo Deus Antimal a lutar contra o mal, fruto do mal uso da sua liberdade. É por aí, então, que queremos caminhar. Até o próximo item!

 Modjumbá axé!
Pe. Degaaxé