segunda-feira, 26 de março de 2012

4 REAÇÃO DISTINTIVAMENTE CRISTÃ AO PROBLEMA DO MAL

            Após termos interrompido a sequência de artigos sobre o mal, para podermos apresentar a síntese do Congresso de Entidades Negras Católica, voltamos ao nosso assunto. É bom lembrar que nos aproximamos da Semana Santa e nela se misturam o Mistério de Deus em seu amor por nós e o mistério do mal moral, fruto da nossa resposta a Ele. Embora Jesus tenha vencido o mal e a morte, parece triunfar em nossa vida aquele que alimentarmos mais. Então, vamos para o nosso 4º passo, esclarecer qual é deve ser sempre a resposta específica da nossa identidade cristã ao problema do mal. 
           Na visão cristã, o mundo é visto como um lugar bom e digno, em vista da realização da pessoa. Neste mundo, entes livres, estando às voltas com as tarefas e os desafios da sua existência em um ambiente comum, podem tornar-se ‘filhos de Deus’ e ‘herdeiros da vida eterna’. Santo Irineu nos ajuda a pensar teologicamente o propósito continuamente criativo de Deus para o ser humano quando diz que este “ser humano foi feito como uma pessoa à imagem de Deus, mas ainda não foi trazido como um agente livre e responsável à semelhança finita de Deus, que é revelada em Cristo”[1]. Isso justifica, em parte, um agir humano em desacordo com a vocação a que é chamado.
           O fato da existência do mal, torna difícil uma mudança de postura por parte de muitos céticos e gnósticos a respeito da ideia de um Criador que, em seus cuidados, é Pai-Mãe. Como sustentar, então, a fé num Deus todo-poderoso e perfeitamente amoroso diante da existência do mal?[2] Brota espontânea outra pergunta: uma criança inocente, que sofre, merece a dor como justo castigo? Georg Büchner qualificou o mal de ‘pedra de toque do ateísmo’, e autores sensíveis como Dostoievski e Camus veem no sofrimento inocente talvez a mais terrível das figuras do mal e a impossibilidade de crer em Deus. O próprio Camus chegou inclusive a afirmar: “Quando vejo uma criança inocente sofrer, não posso crer em Deus”[3]. Epicuro já colocava a questão: “ou Deus pode e não quer evitar o mal, e então não é bom; ou quer e não pode, e então não é onipotente”[4]. Este dilema de Epicuro é hoje anacrônico, pois vem de um pensamento já passado e carece de sentido. Em nenhum caso seria isso coerente com um Deus, confessado como bom e onipotente[5]. Mas deve-se cuidar também para não ir pro outro extremo, como se expressa muito bem R. A. Ullmann:
‘Afirmar que os males, as injustiças, os sofrimentos e as contrariedades devem ser acolhidos, na esperança de que Deus, um dia, há de recompensá-los, neste mundo ou no outro, pós-morte é refugiar-se na utopia, quando não toma feição de doentio masoquismo (...) Para não poucos, isso é drogar-se com o ópio de uma fé inane. Prático e racionalista, o ser humano da atualidade quer soluções concretas e imediatas para seus problemas’[6].
            Que tudo isso ganhe um novo sentido e valor, em vista do que virá (Rm 8, 18), não tenhamos dúvida, mas não devem ser buscados como valor em si e como exigidos por Deus[7]. “É problemático afirmar que o mal (sofrimento) das criaturas constitui um meio para fins superiores”[8]. Temos que admitir que não existe um valor tal que possa justificar uma ação moralmente má. O fim não justifica os meios. Deus não quer nem pode querer o mal moral, porquanto seria conivente com ele. Muito menos pode querê-lo como meio para realização de qualquer valor que seja[9]. Reforça esta ideia o autor J. Hich, quando afirma: “De uma coisa os cristãos estão certos: o mal está em oposição direta à vontade de Deus. Neste sentido, o clímax da história do mal é a própria crucificação de Cristo: um sofrimento extremamente injusto e manifestação de rejeição violenta e homicida do Messias Deus”[10]. A morte de Cristo é vista paradoxalmente, pois, por um lado, foi a pior coisa que já aconteceu: a morte do Filho divino; por outro, foi a melhor coisa que já aconteceu por se tratar da salvação do ser humano. Assim o mal supremo se tornou o bem supremo. Mas é bom lembrar que o sofrimento como valor em si está superado. Nisto consiste o diferencial cristão em relação ao mal[11].
            O sofrimento e a crucificação de Cristo - o maior dos males - não deve ser entendido como compensatório, algo querido por Deus, mas resultado de seu engajamento profético, na revelação do amor e da misericórdia de Deus. Segundo o autor F. Varone, ao invés de dizermos: “Jesus morreu por nossos pecados”; é preciso dizer que “Jesus morreu por causa de seu combate profético levado até o fim”[12]. Ele parece morrer como um fracassado, mas, para além do fracasso, é preciso descobrir o valor salvífico e universal de sua morte[13]. “A paixão e morte de Jesus não devem ser relacionadas apenas com as ideias de expiação e vicariato, mas também com o sofrimento e miséria da comunidade no mundo, e deste ponto de vista não tem sentido exclusivo, mas inclusivo, protótipo”[14].
          Jesus realiza o misterioso servo de Deus de Isaías, não por substituição e compensação formal, mas antes pelo investimento concreto de sua prática a serviço da libertação de todas as pessoas que sofrem. O autor F. Varone procura desmitificar a falsa compreensão do sofrimento de Cristo, lembrando que de modo algum é um valor em si[15]. Segundo ele, Jesus não procurava sofrer, mas viver uma prática positiva, mesmo se devesse sofrer cruelmente por causa dela. Jesus não devia nem queria sofrer em nosso lugar, mas antes investir sua vida até o fim para nos salvar. O sofrimento é para Jesus a ocasião de revelar o amor que tem para conosco e, para nós, a possibilidade desconcertante de o reconhecer[16]. Assim a direção da fé está centrada no sacrifício do Cristo e isso quer dizer na prática histórica levada até a morte e desembocando na ressurreição, prática em que Deus inaugurou e revelou a finalidade infinita da existência humana[17]. Portanto, “visto que a morte e ressurreição de Jesus estão relacionadas, estar incluído no destino de Cristo implica também na participação de ‘sua vida’ (2 Cor 4, 10)”[18]. Permanecem estas provocações para que repensemos o significado do sofrimento e a morte de Jesus e para que, como ele, nos empenhemos pela causa do Reino de Deus na luta contra todo tipo de mal, nem que isto nos custe a vida. Nos falaremos, então, no próximo item. Um bom início de Semana Santa!

Modjumbá axé!
            Pe. Degaaxé





[1] Id., Ibid. p. 694
[2] Cf. Id., Ibid., p. 691.
[3] CAMUS apud ULLMANN, R. A. Op. cit., p. 17. Comunga com esta mesma ideia o autor TORRES QUEIRUGA, A. Esperança apesar do mal. p. 124. 
[4] TORRES Queiruga, Esperança apesar do mal. p. 124. O autor possui uma recente obra, intitulada Repensar o mal, na qual traz o teorema de Epicuro melhor desenvolvido: ‘Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, além disso, é impotente; se pode e quer – e isto é o mais seguro -, então de onde vem o mal real e por que não o elimina?’ (EPICURO apud TORRES QUEIRUGA, A. Repensar o mal. p. 18).
[5] Id., Ibid., p. 130s.
[6] ULLMANN, R. A. Op. cit., p. 24. Ver também GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Por que sofrer? p. 172.
[7] GERSTENBERGER, erhard et SCHRAGE, W. Por que sofrer?. p. 179.
[8] ULLMANN, R. A. O mal., p. 24.
[9] Cf. Id. Ibid., p. 25
[10] HICH, J. Op. cit., p. 691.
[11] Cf. HICH, J. Op. cit., p. 695.
[12] VARONE, F. Esse deus que dizem amar o sofrimento. p. 57. “Seus sofrimentos decorrem de forma quase consequente e inevitável do centro de sua mensagem e vida (...) Sua paixão está inseparavelmente relacionada à sua obra”. (GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Por que sofrer? p. 152).  
[13] Cf. Id., Ibid. p. 133.
[14] GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Op. cit., p. 147.
[15] Cf. VARONE, F. Op. cit., p. 271.
[16] Cf. Id., Ibid. p. 137s.
[17] Cf. Id., Ibid. p. 253.
[18] GERSTENBERGER, E. et SCHRAGE, W. Op. cit., p. 148.

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