sábado, 25 de agosto de 2012

E A FAMÍLIA, COMO VAI? VAI... OBRIGADO!


 
            Uma reflexão sobre a realidade vocacional não pode deixar de abordar duas questões fundamentais: a primeira é por que a vocação?; e a segunda é para que a vocação? As respostas a estas questões provocam inquietação, levando à decisão sobre qual o verdadeiro caminho devemos seguir para vivermos com sentido.
            A partir da primeira, por que a vocação?, a nossa resposta é: porque Deus é amor e, por isso ama. Se ele ama, então, chama. Todo o cuidado que tem para conosco vem da intensidade do seu amor. Portanto, na origem da nossa vocação tem um Deus bom que nos amou por primeiro e, por isso nos chamou; um Deus que, na total gratuidade e generosidade, não poupou esforços para que experimentássemos o melhor. Vocação, então é amar, cuidar, dar o melhor de si, servir. Geralmente, quando enviamos uma imagem a uma impressora, ela imprime fielmente a imagem na folha. Assim sendo, como numa folha, temos o jeito de ser e a imagem de Deus impressos em nós. Viver a vocação é realizar esses traços de Deus impressos em nós. Em outras palavras, a pessoa só realiza a sua vocação se amar, se servir, se der o melhor de si, assim como o próprio Deus faz.
           Deus nunca falou diretamente a ninguém (nem mesmo a Maria, a sua serva predileta). O chamado dirigido a cada pessoa acontece através de mediações. Por elas somos despertados (situações da comunidade) e por elas discernimos também qual o caminho melhor a seguir (confessor, acompanhante espiritual). Entramos, então, na segunda questão que é para que a vocação? Comecemos ilustrando com uma historinha que li, algum tempo atrás, no jornalzinho da arquidiocese de Feira de Santana, na Bahia. A historinha relatava mais ou menos assim: Beto era um menino sapeca, que aprontava muito, mas que era muito amado pelos que estavam à sua volta: pais, parentes, vizinhos, etc.. Num certo dia, o Beto causou um grande reboliço em casa. É que seu pai havia comprado balas e colocara num pote, no centro da sala. Quando Beto passeava pela sala e viu as balas, não se conteve e meteu a mão no pote, pegando todas as balas. O detalhe é que não conseguia puxar a mão de volta. Como ele chorava aos berros, veio sua mãe, sua tia, as vizinhas e cada uma dava uma dica para ver se a mão saía: passa sabão, dá massagem, quebra o pote, etc. Chegando seu pai, lembrou-se de que havia colocado balas no pote. Então, disse para o Beto: Beto, meu filho, solta as balas! Após ter soltado as balas, a sua mão ficou livre e a alegria voltou para a família.
Não é difícil entender que esta história tem muito a ver com nossa caminhada vocacional e as mediações de Deus em nossas vidas. Deus quer que abramos as mãos, ou seja, que vivamos a gratuidade e a generosidade, pois é assim que vale a pena viver. Para darmos este passo, não faltam as pessoas queridas que, como mediadoras de Deus, nos orientam para a melhor decisão a ser tomada. A partir do batismo e, conforme o dom que recebemos, somos convidados a viver em comunidade, nos oferecendo a serviço dos irmãos e irmãs, nos meios eclesiais e sociais. Como é bom saber que não estamos sozinhos e que não somos pequenas ilhas. Como é bonito viver em comunidade, encontrando e dando apoio uns aos outros!
O ambiente familiar, nesse sentido, com sua experiência concreta de fé, é fundamental para o despertar vocacional. A professora Geni Maria afirma que, “Acima de tudo as crianças aprendem pelo que veem, muito mais do que pelo que ouvem. Aquilo que os pais vivem passa para os filhos. E cedo ou tarde acaba constituindo o referencial de vida para eles”. Nunca as famílias viveram tão em crise como em nossos tempos. Lógico que os reflexos desta situação atingem, entre outras, na realidade vocacional. Existem muitos elementos que são louváveis, reconhecidos como determinantes na construção de um ser humano melhor. Mas quando faltarem os testemunhos de fé, faltarão também os seguidores, ou seja, os novos discípulos e discípulas dos quais Jesus quis precisar para que seus ensinamentos cheguem ao maior número de pessoas possível. Devemos continuar apostando nas famílias, pois é daí que surgem as vocações. “Família: trabalho e festa” são três palavras que tem que se relacionar harmoniosamente para que a realidade familiar possa se manter e cumprir sua verdadeira finalidade.
Neste dia das (dos) catequistas, antes de tudo, é preciso lembrar que é na família que temos nossas primeiras lições de catequese e que os pais são nossos primeiros catequistas. Mas queremos dirigir nossa gratidão, de modo especial, a todas as pessoas que, em nível eclesial, tem assumido esta tarefa com muito zelo, contribuindo para que sempre mais pessoas conheçam a proposta de Jesus e se deixe conquistar por ela. Parabéns a todas (dos) as (os) catequistas!
Axé!
Pe. Degaaxé

domingo, 19 de agosto de 2012

A DISPONIBILIDADE E FIDELIDADE DA MÃE DA VIDA


        Celebramos a festa da Assunção de Maria. Trata-se de uma verdade de fé, proclamada pelo papa Pio XII, em 1950, mas vivida pela comunidade cristã a quase 2 mil anos. Sem dúvida alguma, como Deus preparou Maria do seu jeito e ela correspondeu à altura do dom recebido, ele achou por bem toma-la para si totalmente. É assim também em nossa vida: Deus se dá sem medida. Se existe uma medida, esta não vem de Deus, mas da nossa capacidade limitada de acolher. No entanto, quando o acolhemos na totalidade do nosso ser, sentimo-nos totalmente tomados e envolvidos pela sua graça, pois ele nunca se deixa vencer, conforme afirma Jeremias: “Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir; tu te tornaste forte demais para mim, tu me dominaste” (Jr 20, 7). Vamos refletir, então, sobre duas imagens que são aplicadas a Maria e suas implicâncias para a nossa caminhada de discípulos missionários de Jesus: a Mulher vestida de honra e glória e a Mulher visitadora.

       A Mulher vestida de honra e glória, segundo o Apocalipse, retrata a Igreja perseguida pelo Império Romano e que, mesmo assim é chamada, em todos os tempos, a gerar Jesus para todas as pessoas. É também imagem de Maria, aquela que, com a sua resposta solidária, deu a vida ao mundo. Em meio a forças que atentam contra o projeto de Deus, a vida se sente ameaçada. Com Maria aprendemos a desenvolver o cuidado com a vida, a defendê-la e a protege-la, através de opções que revelam um estilo de vida simples, não esbanjador, anticonsumista e, portanto, profético. Assim como Deus veio em socorro da mulher do Apocalipse, ele está sempre perto de nós, aprovando as ações que revelam suas verdadeiras intenções para o mundo e o ser humano.
       A Mulher visitadora é a Maria que não faz serviço com pressa, mas que tem pressa para servir. O encontro das duas mulheres é o encontro das Alianças: a Antiga Aliança acolhe e dá passagem à Nova. Há um encontro de gerações: a Idosa acolhe a jovem e a jovem serve à idosa. O projeto de Deus contempla todas as gerações e cada uma é convidada a assumir o seu papel com aquilo que lhe é específico. O movimento que há entre as duas explicita o jeito particular de Deus agir, contrariando as expectativas humanas: a estéril torna-se fecunda; a virgem fica grávida milagrosamente.  As duas nos fazem perceber que é preciso desinstalar-nos e perceber nas pessoas que vem ao nosso encontro, não uma ameaça, mas uma portadora de Deus. Particularmente, Maria nos ajuda a acreditar que os grandes feitos de Deus na história são sinal de sua fidelidade. Portanto, é feliz quem acredita nas promessas de Deus, pois é fiel aquele que promete. A fé se torna critério fundamental de felicidade.

       Quando nos perguntamos: o que fazer e o que temos feito diante de tantas graças recebidas? A vida de Maria se apresenta como resposta adequada. Maria é uma de nós que se sentiu agraciada por Deus e viveu uma vida agradecida. Agraciada, porque Deus realizou maravilhas em sua vida; Agradecida, porque disponibilizou sua vida para que Deus, através dela, da sua resposta, pudesse realizar maravilhas na vida das pessoas, principalmente, dos pobres. Em menor grau, também nós experimentamos estas características: por pura gratuidade e generosidade divina, somos agraciados com o dom da vocação. O ser agradecido (a) se manifesta quando fazemos a vida valer a pena através de um serviço alegre e generoso. Ser agraciado (a) não depende de nós, depende de Deus, que nos cumula de bênçãos; o ser agradecido (a) só depende de nós: vivermos como fonte de bênçãos.

       Maria viveu um discipulado solidário e compassivo. Soube entender que a vida se realiza na entrega e doação. Por isso seguiu o seu Filho até a cruz e para além da cruz, podendo celebrar com os demais seguidores e seguidoras o milagre da vida que vence a morte e insiste em viver. Ela se torna assim sinal da nova humanidade, transformada e resgatada pelo seu Filho. Maria é a imagem da Igreja realizada, pois como membros deste corpo, discípulos missionários de seu Filho, caminhamos na esperança, comprometendo-nos com as mudanças pelas quais a sociedade deverá passar para que se realize de fato a vontade de Deus.

        Estamos em sintonia também com todas as pessoas consagradas que, como Maria, fazem de sua vida verdadeira profecia: anunciam e também denunciam. Anunciam que vale a pena seguir Jesus, entregando-se totalmente pela causa do reino, na disponibilidade e fidelidade. Denunciam todo tipo de vida cômoda, individualista e consumista, indiferente à realidade dos mais pobres e sofredores. Com Maria, modelo das pessoas consagradas, nossa vocação se sente fortalecida, pois olhamos para ela e nos enxergamos melhor, aceitando em nossa vida as propostas divinas. Não nos angustiemos, pois, se vem de Deus – diria Maria - só pode ser coisa boa. O que vem de Deus, que é “Terna Mãe” – diz o Pe. Calábria – é sempre para o nosso bem.
Axé!
Pe. Degaaxé

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

7 O MAGISTÉRIO DA IGREJA E A INCULTURAÇÃO DA LINGUAGEM LITÚRGICA


A constituição conciliar Sacrossanctum Concilium, quando utilizou a palavra “adaptação”, referindo-se à Liturgia, quis desencadear uma sensível abertura do processo celebrativo à mentalidade das diversas culturas nas quais a Igreja vai se inserindo (cf. SC 38). A expressão “adaptação” implica em renovação pedagógica e pastoral das celebrações litúrgicas, conforme os tempos e situações culturais dos povos[1]. Para isso, o Concílio confiou à competência e ao zelo das Conferências Episcopais a incumbência de estudar com os seus peritos os possíveis elementos a serem oportunamente incorporados na liturgia, atendendo ao que era já anseio de integrar nas diversas celebrações expressões da religiosidade popular[2]. Então, os bispos latino-americanos julgaram ser necessário, não somente adaptar-se à realidade das diversas culturas, mas encarnar-se nela (cf. Med. 9.7), ou seja, possibilitar o uso da “criatividade” na liturgia, indo além da adaptação, que apenas transplanta ou enxerta elementos culturais na liturgia[3].
“A meta da ‘criatividade’ é a introdução de novos símbolos, mais compreensíveis do povo de hoje, porque criados pela piedade popular ou experimentados nas CEBs e outros grupos de oração”[4]. Mas a “criatividade” deve alcançar um nível mais profundo, que é o da “aculturação”. De um modo geral, “a aculturação” é definida como o domínio de uma cultura sobre outra, mas, quando aplicada à liturgia, torna-se “um processo dinâmico que se desencadeia quando a fé se instala nas bases de uma cultura”[5]. No que concerne à inculturação, o processo é ainda mais profundo, pois “(...) incorpora ritos sociais ou religiosos, dando-lhes sentido cristão, sem desfigurar sua natureza. A própria liturgia romana assim se formou, incorporando, por exemplo, a festa pagã do Sol invicto na celebração do Natal. Por esta inculturação a liturgia se propõe continuar na História o milagre de Pentecostes quando, sob o impulso do Espírito, multidões entendiam a linguagem única do amor e proclamavam as maravilhas de Deus, expressando-se cada um em sua língua”[6]
Com a linguagem criativa dos gestos, da alegria, da dança, da acolhida, dos símbolos, vai-se contribuindo para aprofundar a mensagem do evangelho de Cristo, atualizando o seu mistério. É neste espírito que reflete o documento de Aparecida, segundo o qual “a inculturação é vista como uma riqueza, pela presença de novas expressões e valores, manifestando e celebrando cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir fé e vida e assim contribuindo para uma catolicidade mais plena” (DAp. 479).
Quanto mais inculturadas forem nossas liturgias, mais plena será a participação das pessoas no mistério celebrado. Que sentido tem uma liturgia totalmente dissociada da realidade das pessoas e indiferente à sua linguagem e símbolos? Portanto, urge um esforço sempre maior para fazer com que a celebração litúrgica esteja em sintonia com a identidade e as formas de comunicação próprias de nossa gente, ou seja, possibilitar que a liturgia se expresse em símbolos e linguagem própria das nossas culturas[7]. Tudo isso se justifica porque a Igreja não deseja impor uma forma rígida e única na liturgia (cf. SC 37) e por isso, em seu cuidado pastoral, tem orientado para uma maior sensibilidade junto às diversas culturas, que acolhem e celebram o mistério de Jesus Cristo. Ela chama a atenção para “a importância de deixar o povo se exprimir com gestos, símbolos, dramatizações, numa celebração litúrgica adequada ao seu universo mental. Pois, o gesto corporal ‘exprime e estimula os pensamentos e sentimentos dos participantes”[8].
Percebemos, então, que a inculturação litúrgica é útil e necessária, mas existem algumas exigências que devem ser levadas em conta, se quisermos que a mesma aconteça de forma eficaz. Para isso, é preciso: a) conhecimento profundo da mensagem cristã e da sua liturgia; b) conhecer profundamente a cultura, sobretudo as cerimônias tradicionais e, com discernimento, ver o que é compatível com a proposta celebrativa, evitando o sincretismo e a dupla pertença; c) coragem e confiança na ação do Espírito que guia, ilumina e nos lança na aventura de descobrir novas maneiras de rezar; d) lembrar de que a inculturação é uma questão de fidelidade a Cristo e ao Espírito que enviam as pessoas de um lugar para outro[9].
Tais passos são, ao mesmo tempo, desafios a serem enfrentados e assumidos, corajosa e profeticamente, na fidelidade à missão que o próprio Jesus Cristo confiou aos que o seguem. Trata-se de uma “fidelidade criativa” que salvaguarda o conteúdo inalterável da fé cristã, revestindo-o dos símbolos próprios que tem em conta os diversos meios culturais, sociais e até mesmo os raciais (cf. EN 65). Os bispos reconhecem que “entre nós os vários grupos étnicos, como os índios, os negros, os orientais, apresentam muitos desses elementos, que já merecem ser inculturados em nossas celebrações, sobretudo nos sacramentos”[10]. É atendendo a esta solicitação que iremos retomar nossa reflexão sobre a inculturação da liturgia no meio específico das culturas afro-brasileiras, em seu jeito criativo e dinâmico de celebrar. Até o próximo artigo!

Axé!

Pe. Degaaxé





[1] Cf. CNBB. Animação da vida litúrgica no brasil. doc. 43, n. 166.
[2] Cf. Ibid., n. 182.
[3] Ibid., n. 174.
[4] Ibid.,  n. 174.
[5] Ibid. n. 177.
[6] Ibid., n. 179s.
[7] CNBB. Diretório para missas com grupos populares. doc. 11. n. 1.6. Podemos verificar ainda, ao número 1.2.3 do mesmo documento o seguinte: “Uma liturgia com o povo simples será tanto mais conforme ao seu gosto e capacidade e tanto mais proveitosa, quanto mais se encarnar em sua experiência vivencial” (Ibid., n. 2.3.1).
[8] CONGREGAÇAO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Geral do Missal Romano, n. 20.
[9] Cf. LANGA, Adriano. A oração cristã e as exigências da inculturação, p. 91.
[10] CNBB. Animação da vida litúrgica no brasil, n. 183.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

6 EVANGELIZAÇAO: A ENCARNAÇÃO COMO FONTE E A INCULTURAÇÃO COMO EXIGÊNCIA

A evangelização tem um caráter universal, porque é universal a salvação que Jesus Cristo propõe, fazendo acontecer o seu reino no contexto das diversas culturas, conforme bem expressa o papa Paulo VI na Evangelii Nuntiandi: “O reino que o Evangelho anuncia é vivido por pessoas profundamente ligadas a uma determinada cultura, e a edificação do reino não pode deixar de servir-se de elementos da civilização e das culturas humanas” (EN 20). Em outras palavras, para evangelizar, é necessário aproximar-se das culturas e dialogar com elas, reconhecendo nelas a ação do reino de Deus ou o reino de Deus em ação. A ação de Deus, através do seu Espírito, dá-se permanentemente no interior de todas as culturas. Na plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho Jesus Cristo, que assumiu as condições sociais e culturais dos povos” (SD 243). Esta realidade aponta para outro importante tema desta pesquisa: a inculturação.
Quando falamos em inculturação, não se trata de uma ação opcional ou secundária, mas de um aspecto realmente fundamental na evangelização. Basta relacionarmos com o processo da Encarnação do Filho de Deus[1], para entendermos a sua importância. Sobre isso, o autor moçambicano A. Langa, afirma que a inculturação é o outro nome da encarnação de Jesus Cristo, em cada cultura existente ou que virá[2]. Mencionando algumas tribos africanas, o mesmo autor reforça a compreensão: “Se ontem Jesus falou e rezou em hebreu e em aramaico, Ele quer hoje falar e rezar em xangana, em nyanja, sena”[3], guarani, yorubá, etc. A encarnação de Jesus se deu de modo universal e permanente, contemplando todos os povos e culturas. Através da inculturação, esta encarnação de fato se torna mais sentida nas mais desconhecidas realidades. O documento da Conferência de Santo Domingo também faz referência a esta analogia: “A analogia entre a encarnação e a presença cristã no contexto sócio-cultural e histórico dos povos suscita para nós o problema teológico da inculturação. Esta inculturação é um processo que vai do Evangelho ao coração de cada povo e comunidade com a mediação da linguagem e dos símbolos compreensíveis e apropriados segundo o juízo da Igreja” (SD 243).
A CNBB define a inculturação como o “processo de inserção do Evangelho no quotidiano de um povo, de tal forma que ele possa expressar sua experiência de fé em sua própria cultura”[4]. Neste processo, o Evangelho se encarna em uma determinada cultura a fim de que a mesma possa expressar sua fé através da linguagem e símbolos que lhe são próprios. Quando se alcança este nível de maturidade no processo, temos o nascimento de uma nova criação. A inculturação pode ser definida ainda como “uma íntima transformação dos valores culturais autênticos, graças à sua integração no cristianismo e ao enraizamento do cristianismo nas diversas culturas humanas”[5]. Tanto uma como outra afirmação destaca o resultado de um misterioso intercâmbio de valores, que implica em enriquecimento para a cultura e enriquecimento para a Igreja. Trata-se de um inserir-se para integrar. Este dúplice movimento é fundamental, no que concerne a uma evangelização autêntica. Em outras palavras, “com a inculturação, a Igreja encarna o Evangelho nas diversas culturas e, ao mesmo tempo, introduz os povos com as suas culturas na própria comunidade’” (RM 52)[6].
Axé!
Pe. Degaaxé

[1] “Inculturação é o processo que põe frente-a-frente o Evangelho e uma dada cultura, para que o mesmo Evangelho se incarne, à maneira de Jesus Cristo que se fez homem”. (LANGA, A. Op. cit., p. 79). Sobre isso temos ainda uma contribuição do Bem-aventurado João Paulo II: “Este dúplice movimento, em ato na inculturação, exprime, portanto, um dos componentes do mistério da Encarnação” (João Paulo II. Exortação Apostólica Catechesi Tradendae. n. 53, 16 de out. de 1979. Apud CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. A liturgia romana e a enculturação,  p. 8).

[2] Cf. LANGA, Adriano. Op. cit., p. 85. 
[3] Ibid., p. 85. 
[4] CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da igreja no brasil 1999-2002. doc. 61, n. 88. 
[5] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. A liturgia romana e a inculturação, p. 7.
[6] Esta realidade foi explicitada no Concílio, no documento sobre a Sagrada Liturgia e retomado com vigor nas Diretrizes Gerais da Evangelização da Igreja no Brasil, doc. 61, 1999-2002, nº 263, p. 158. Também queremos ressaltar que outro documento da CNBB sobre Pastoral afro, princípios de orientação, na página 52, também trabalha muito bem este assunto.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

5 SOMOS TRANSFORMADOS (AS) NAQUELE QUE CELEBRAMOS


           Segundo a liturgista I. Buyst: “A liturgia leva a uma aprendizagem na medida em que as pessoas participam da própria ação litúrgica, ativa e consciente, exterior e interiormente, de forma plena e frutuosa; na medida em que entram de cheio na proposta ritual”[1]. É fundamental que a celebração litúrgica aconteça na sua integralidade, acolhida em sua proposta ritual, que tem como finalidade transformar as pessoas segundo o mistério que se celebra. Na liturgia tudo é simbólico, enquanto congrega, dá sentido e faz experimentar uma realidade que não se esgota no real, naquilo que se vê e se pode tocar.
           A assembleia, reunida para celebrar o mistério pascal de Cristo, torna-se ‘sacramento’ de Sua presença, escutando a Palavra de Deus e dirigindo  a Ele suas preces para que venha o seu reino anunciado nas leituras. Ao redor da mesa do Senhor, ela traz o pão e o vinho, que simbolizam a vida dos seus membros e do mundo inteiro – com suas alegrias e esperanças, tristezas e angústias, acertos e desacertos, avanços e retrocessos – entregando nas mãos do Pai, juntamente com a vida de Jesus Cristo, durante a oração eucarística. Ao proclamar a bênção da mesa, que é a oração eucarística, a assembleia diz: por Cristo, com Cristo e em Cristo, oferecendo ao Pai, com os sinais do pão e do vinho, o ‘sacrifício de louvor’, dando graças pela salvação que ele realizou na morte-ressurreição do Senhor, mas também invocando o Espírito Santo para que o mistério da páscoa de Jesus se realize hoje entre todos e todas na celebração, prolongando-se no cotidiano de suas vidas. Ao partilhar o pão e o vinho, em seguida, sente-se associada ao mistério pascal de Cristo, deixando-se transformar por ele, assumindo um caminho de seguimento de Jesus, rumo à plena comunhão com o Pai. Os participantes devem voltar às atividades do cotidiano como testemunhas do Ressuscitado e profetas do reino de Deus[2] para promover a vida e a dignidade das pessoas, lutando contra as estruturas injustas como fez o próprio Jesus, na doação de sua vida, para que todos e todas tenham vida e vida plena.
A linguagem simbólica litúrgica é, portanto, um convite a um envolvimento pleno com a proposta salvífica de Cristo, que nos faz passar continuamente da escravidão para a liberdade, do luto para a alegria, da servidão para a plena cidadania. Sendo assim, “somos transformados naquilo que celebramos”, acolhendo a realidade do mistério pascal como “páscoa de Cristo na páscoa da gente, páscoa da gente na páscoa de Cristo”[3]. Todas as celebrações da Igreja fazem referência a este mistério. A nossa participação, longe de ser uma experiência puramente intimista, nos faz sentir a alegria de viver intensamente a dimensão comunitária. Mesmo que sejamos de diferentes lugares e culturas, formamos um só corpo em Cristo[4] e, com ele, chamados a “viver a missão de transformar este mundo e abri-lo ao Reino de Deus”[5].
Axé!
Pe. Degaaxé

[1] BUYST, Ione. O segredo dos ritos, p. 159; cf. Também, da mesma autora: Liturgia de coração, p. 122-136.
[2] Cf. BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. Op. cit., p. 34. na mesma página , a autora reflete o sentido integral da celebração eucarística, utilizando o relato dos discípulos de Emaús: “Também no relato do encontro do Ressuscitado com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-35) reconhecemos essa mesma estrutura dinâmica. O Ressuscitado vem ao encontro dos seus, caminhando com eles; a partir dos relatos feitos pelos discípulos, anuncia-lhes o sentido de sua morte-ressurreição; em seguida, celebra com eles a fração do pão; cheios de ardor, os discípulos voltam a Jerusalém para anunciar o acontecido”.
[3] CNBB Animação da vida litúrgica no Brasil. doc. 43, n. 300.
[4] “(...) O sujeito último é Cristo, que fez da Igreja o seu corpo sacerdotal, unidade na diversidade, diferente nos ministérios e diferente nos níveis de maturidade eclesial de fé, nas expressões e sensibilidade, como também eram muito diferentes as pessoas que se exprimiam ao redor de Jesus” (frase de D. Armando Bucciol, durante o Simpósio de Teologia, Porto Alegre, 16 de junho de 2012)
[5] SOUZA, Marcelo de Barros. Celebrar o Deus da vida: tradição litúrgica e inculturação, p. 20.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

4 RAÍZES DA LINGUAGEM SIMBÓLICA DA LITURGIA CRISTÃ

          Quando falamos de liturgia, nos referimos a ação culminante da Igreja, assim como base e fonte de onde ela extrai toda a sua vitalidade (cf. SC 10). É o centro da vida da Igreja e a ‘alma’ da sua missão evangelizadora. Quando se celebra a sagrada liturgia, celebra-se a novidade pascal introduzida por Cristo, através da doação de sua vida pela salvação da humanidade.  Conforme a Sacrossanctum Concilium, “a liturgia é tida como o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do ser humano; e é exercido o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros” (SC 7). A ação simbólica que se desenvolve a cada liturgia é o próprio Cristo que, em sua misericórdia, nos faz participar do seu Mistério. Experimentamos a salvação e contribuímos para a salvação dos demais irmãos e irmãs. Trata-se de uma ação sagrada por excelência, inigualável a qualquer outra atividade na Igreja, através da qual prolongamos, no mundo, a Obra de Cristo (cf. SC 7)[1].
          A liturgia cristã se enraíza no culto judaico, que tem no seu centro Iahweh, Deus único e pessoal, cuja presença ativa na história busca libertar o seu povo e estabelecer com ele uma aliança de amor[2]. A celebração da páscoa é central na vida deste povo e seu sentido “foi amadurecendo ao longo dos séculos. De uma festa primaveril e pastoril, recebeu um novo sentido com a libertação do Egito. Tudo isso preparava o povo para receber seu pleno sentido em Jesus Cristo, que se deixou imolar pela libertação da humanidade inteira”[3].
         Jesus de Nazaré nasce, vive e atua dentro do sistema de culto do seu povo. Ele é um assíduo freqüentador da sinagoga (cf. Lc 4,16; Mc 1,21-39; Mt 4,23), participa regularmente do culto do templo e das festas anuais de peregrinação (Lc 2,41-42; Jo 2,13). Assumindo a cultura do seu povo, com suas linguagens e símbolos, ajudou-o a olhar a realidade com uma visão diferente e a ter uma postura mais comprometida, em vista da transformação das estruturas injustas que impedem a vida digna para as pessoas. Por causa do seu engajamento profético, na fidelidade ao projeto de Deus, foi martirizado.  Ao passar pela morte e gloriosa ressurreição, conduziu as pessoas a uma intensa comunhão com Deus e entre si. Ele não institui uma nova páscoa, mas realiza, pela sua vida, morte e ressurreição, a plenitude da páscoa[4], dando um sentido novo, um novo significado a muitos ritos e festas litúrgicas.
          A linguagem simbólica da liturgia atual foi herdada da dinâmica da última ceia, em que Jesus - utilizando o ritual judaico - anuncia aos seus discípulos a libertação plena que estava por vir e que ele mesmo desejou ardentemente partilhar com os seus amigos. Nesta ceia, Jesus prevê algumas novidades, antecipando ritualmente o que ia se passar com ele na cruz. Num clima de muita expectativa e familiaridade, Jesus, por meio de gestos simbólicos, manifesta o sentido de sua entrega livre, característica que marcou toda a sua vida e que devia fazer parte também da vida dos seus seguidores[5]. Sendo assim, “Tomou o pão, deu graças, partiu e deu a seus discípulos (...) no fim da ceia tomou o cálice com vinho em suas mãos, deu graças e o deu a seus discípulos (...). As palavras que acompanham esses gestos simbólicos de Jesus é que traziam a novidade em relação à ceia judaica: Tomem e comam, isto é o meu corpo que será entregue por vocês (...). Tomem e bebam todos vocês, isto é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vocês (...). Façam isto para celebrar a minha memória.[6]
Celebrar a liturgia é, então, realizar o desejo de Jesus: fazer o que ele fez. Jesus envolve os discípulos no mistério de sua entrega e lhes dá a ordem de prolongarem no mundo os seus gestos para a salvação da humanidade. A sua ação salvífica se prolonga no mundo por meio da ação simbólica litúrgica. Através dela, fazemos memória do mistério da morte e ressurreição de Jesus, também chamado mistério pascal. A expressão hebraica zikkarôn e a grega anámnesis, traduzem uma realidade para além de uma simples recordação, uma simples lembrança. Trata-se de uma participação no fato lembrado, graças à participação no rito celebrado (Ex 13, 3-10)[7]. Neste sentido, a liturgia é festa da libertação, pois quem participa atenta e efetivamente dela está experimentando, no hoje da história, a libertação realizada pelo Senhor uma vez para sempre[8].

Axé!
Pe. Degaaxé


[1] “A liturgia é a vida da igreja e chamada a ser memorial do mistério pascal. A liturgia é a vida dos cristãos. Quando falamos liturgia, segundo a Sacrossanctum Concilium, existe um antes e um depois: o antes é o conhecimento da Palavra de Deus e o aprofundamento do que celebramos; o depois é a vida de caridade, o testemunho” (frase de D. Armando Bucciol, atual presidente da Comissão Episcopal para a Liturgia da CNBB, durante o Simpósio de Teologia, em Porto Alegre, dia 16 de junho de 2012).
[2] Cf. BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. O mistério celebrado, p. 33.
[3] ZILLES, Urbano. Significação dos símbolos cristãos., p. 23.
[4] Cf. SOUZA, Antônio Carlos de Oliveira. Tempos e festas da Liturgia. p. 78.
[5] Cf. BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. O mistério celebrado, p. 33.
[6] Ibid., p. 33.
[7] “Fazer memória vai para além do lembrar: Recordamos os feitos de Deus e pedimos que, na sua misericórdia, continue realizando maravilhas entre nós. A finalidade última da Eucaristia é tornar-nos um só corpo com Cristo. Fazer memória é participar do seu destino. Ao celebrar o mistério de Cristo a cada liturgia, vamos nos moldando ao mistério de Cristo para nos transformarmos nele, aderindo e assemelhando-nos a ele” (palavras do padre H. Farias, assessor de Liturgia da CNBB, durante conferência sobre Espiritualidade litúrgica, no VII Congresso de Entidades Negras Católica – CONENC, na cidade de Londrina, entre os dias 09 e 12 de fev. de 2012).
[8] “O mistério pascal de Cristo é celebrado, não é repetido. O que se repetem são as celebrações. Em cada uma delas sobrevém a efusão do Espírito Santo que atualiza o único Mistério” (palavras de D. Armando Bucciol, atual presidente da Comissão Episcopal para a Liturgia da CNBB, durante o Simpósio de Teologia, em Porto Alegre, dia 16 de jun. de 2012).