Quando falamos de liturgia, nos referimos
a ação culminante da Igreja, assim como base e fonte de onde ela extrai toda a
sua vitalidade (cf. SC 10). É o centro da vida da Igreja e a ‘alma’ da sua
missão evangelizadora. Quando se celebra a sagrada liturgia, celebra-se a
novidade pascal introduzida por Cristo, através da doação de sua vida pela
salvação da humanidade. Conforme a Sacrossanctum Concilium, “a liturgia é
tida como o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante
sinais sensíveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a
santificação do ser humano; e é exercido o culto público integral pelo Corpo
Místico de Cristo, Cabeça e membros” (SC 7). A ação simbólica que se desenvolve
a cada liturgia é o próprio Cristo que, em sua misericórdia, nos faz participar
do seu Mistério. Experimentamos a salvação e contribuímos para a salvação dos
demais irmãos e irmãs. Trata-se de uma ação sagrada por excelência, inigualável
a qualquer outra atividade na Igreja, através da qual prolongamos, no mundo, a Obra
de Cristo (cf. SC 7)[1].
A liturgia cristã se enraíza no culto judaico, que tem no seu centro Iahweh, Deus único e pessoal, cuja
presença ativa na história busca libertar o seu povo e estabelecer com ele uma
aliança de amor[2].
A celebração da páscoa é central na vida deste povo e seu sentido “foi
amadurecendo ao longo dos séculos. De uma festa primaveril e pastoril, recebeu
um novo sentido com a libertação do Egito. Tudo isso preparava o povo para
receber seu pleno sentido em Jesus Cristo, que se deixou imolar pela libertação
da humanidade inteira”[3].
Jesus de Nazaré nasce, vive e atua dentro do
sistema de culto do seu povo. Ele é um assíduo freqüentador da sinagoga (cf. Lc
4,16; Mc 1,21-39; Mt 4,23), participa regularmente do culto do templo e das
festas anuais de peregrinação (Lc 2,41-42; Jo 2,13). Assumindo a cultura do seu
povo, com suas linguagens e símbolos, ajudou-o a olhar a realidade com uma
visão diferente e a ter uma postura mais comprometida, em vista da
transformação das estruturas injustas que impedem a vida digna para as pessoas.
Por causa do seu engajamento profético, na fidelidade ao projeto de Deus, foi
martirizado. Ao passar pela morte
e gloriosa ressurreição, conduziu as pessoas a uma intensa comunhão com Deus e
entre si. Ele não institui uma nova páscoa, mas realiza, pela sua vida, morte e
ressurreição, a plenitude da páscoa[4],
dando um sentido novo, um novo significado a muitos ritos e
festas litúrgicas.
A linguagem
simbólica da liturgia atual foi herdada da dinâmica da última ceia, em que Jesus - utilizando o ritual
judaico - anuncia aos seus discípulos a libertação plena que estava por vir e
que ele mesmo desejou ardentemente partilhar com os seus amigos. Nesta ceia,
Jesus prevê algumas novidades, antecipando ritualmente o que ia se passar com
ele na cruz. Num clima de muita expectativa e familiaridade, Jesus, por meio de
gestos simbólicos, manifesta o sentido de sua entrega livre, característica que
marcou toda a sua vida e que devia fazer parte também da vida dos seus
seguidores[5]. Sendo assim, “Tomou o
pão, deu graças, partiu e deu a seus discípulos (...) no fim da ceia tomou o
cálice com vinho em suas mãos, deu graças e o deu a seus discípulos (...). As
palavras que acompanham esses gestos simbólicos de Jesus é que traziam a
novidade em relação à ceia judaica: Tomem e comam, isto é o meu corpo que será
entregue por vocês (...). Tomem e bebam todos vocês, isto é o cálice do meu
sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vocês (...).
Façam isto para celebrar a minha memória.[6]
Celebrar a
liturgia é, então, realizar o desejo de Jesus: fazer o que ele fez. Jesus envolve
os discípulos no mistério de sua entrega e lhes dá a ordem de prolongarem no mundo
os seus gestos para a salvação da humanidade. A sua ação salvífica se prolonga
no mundo por meio da ação simbólica litúrgica. Através dela, fazemos memória do
mistério da morte e ressurreição de Jesus, também chamado mistério pascal. A
expressão hebraica zikkarôn e a grega anámnesis, traduzem uma realidade para além de uma
simples recordação, uma simples lembrança. Trata-se de uma participação no fato
lembrado, graças à participação no rito celebrado (Ex 13, 3-10)[7].
Neste sentido, a liturgia é festa da libertação, pois quem participa atenta e
efetivamente dela está experimentando, no hoje da história, a libertação
realizada pelo Senhor uma vez para sempre[8].
[1]
“A liturgia é a vida da igreja e chamada a ser memorial do mistério pascal. A
liturgia é a vida dos cristãos. Quando falamos liturgia, segundo a Sacrossanctum Concilium, existe um antes
e um depois: o antes é o conhecimento da Palavra de Deus e o aprofundamento do
que celebramos; o depois é a vida de caridade, o testemunho” (frase de D.
Armando Bucciol, atual presidente da Comissão Episcopal para a Liturgia da
CNBB, durante o Simpósio de Teologia, em Porto Alegre, dia 16 de junho de
2012).
[2]
Cf. BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. O
mistério celebrado, p. 33.
[3] ZILLES, Urbano. Significação dos símbolos cristãos., p. 23.
[4]
Cf. SOUZA, Antônio Carlos de Oliveira. Tempos e festas da Liturgia. p.
78.
[5]
Cf. BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. O mistério celebrado, p. 33.
[6]
Ibid., p. 33.
[7] “Fazer memória vai para além do lembrar: Recordamos
os feitos de Deus e pedimos que, na sua misericórdia, continue realizando
maravilhas entre nós. A finalidade última da Eucaristia é tornar-nos um só
corpo com Cristo. Fazer memória é participar do seu destino. Ao celebrar o
mistério de Cristo a cada liturgia, vamos nos moldando ao mistério de Cristo
para nos transformarmos nele, aderindo e assemelhando-nos a ele” (palavras do
padre H. Farias, assessor de Liturgia da CNBB, durante conferência sobre Espiritualidade litúrgica, no VII
Congresso de Entidades Negras Católica – CONENC, na cidade de Londrina, entre
os dias 09 e 12 de fev. de 2012).
[8] “O mistério pascal de Cristo é celebrado, não é
repetido. O que se repetem são as celebrações. Em cada uma delas sobrevém a
efusão do Espírito Santo que atualiza o único Mistério” (palavras de D. Armando
Bucciol, atual presidente da Comissão Episcopal para a Liturgia da CNBB,
durante o Simpósio de Teologia, em Porto Alegre, dia 16 de jun. de 2012).
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