quarta-feira, 1 de agosto de 2012

4 RAÍZES DA LINGUAGEM SIMBÓLICA DA LITURGIA CRISTÃ

          Quando falamos de liturgia, nos referimos a ação culminante da Igreja, assim como base e fonte de onde ela extrai toda a sua vitalidade (cf. SC 10). É o centro da vida da Igreja e a ‘alma’ da sua missão evangelizadora. Quando se celebra a sagrada liturgia, celebra-se a novidade pascal introduzida por Cristo, através da doação de sua vida pela salvação da humanidade.  Conforme a Sacrossanctum Concilium, “a liturgia é tida como o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do ser humano; e é exercido o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros” (SC 7). A ação simbólica que se desenvolve a cada liturgia é o próprio Cristo que, em sua misericórdia, nos faz participar do seu Mistério. Experimentamos a salvação e contribuímos para a salvação dos demais irmãos e irmãs. Trata-se de uma ação sagrada por excelência, inigualável a qualquer outra atividade na Igreja, através da qual prolongamos, no mundo, a Obra de Cristo (cf. SC 7)[1].
          A liturgia cristã se enraíza no culto judaico, que tem no seu centro Iahweh, Deus único e pessoal, cuja presença ativa na história busca libertar o seu povo e estabelecer com ele uma aliança de amor[2]. A celebração da páscoa é central na vida deste povo e seu sentido “foi amadurecendo ao longo dos séculos. De uma festa primaveril e pastoril, recebeu um novo sentido com a libertação do Egito. Tudo isso preparava o povo para receber seu pleno sentido em Jesus Cristo, que se deixou imolar pela libertação da humanidade inteira”[3].
         Jesus de Nazaré nasce, vive e atua dentro do sistema de culto do seu povo. Ele é um assíduo freqüentador da sinagoga (cf. Lc 4,16; Mc 1,21-39; Mt 4,23), participa regularmente do culto do templo e das festas anuais de peregrinação (Lc 2,41-42; Jo 2,13). Assumindo a cultura do seu povo, com suas linguagens e símbolos, ajudou-o a olhar a realidade com uma visão diferente e a ter uma postura mais comprometida, em vista da transformação das estruturas injustas que impedem a vida digna para as pessoas. Por causa do seu engajamento profético, na fidelidade ao projeto de Deus, foi martirizado.  Ao passar pela morte e gloriosa ressurreição, conduziu as pessoas a uma intensa comunhão com Deus e entre si. Ele não institui uma nova páscoa, mas realiza, pela sua vida, morte e ressurreição, a plenitude da páscoa[4], dando um sentido novo, um novo significado a muitos ritos e festas litúrgicas.
          A linguagem simbólica da liturgia atual foi herdada da dinâmica da última ceia, em que Jesus - utilizando o ritual judaico - anuncia aos seus discípulos a libertação plena que estava por vir e que ele mesmo desejou ardentemente partilhar com os seus amigos. Nesta ceia, Jesus prevê algumas novidades, antecipando ritualmente o que ia se passar com ele na cruz. Num clima de muita expectativa e familiaridade, Jesus, por meio de gestos simbólicos, manifesta o sentido de sua entrega livre, característica que marcou toda a sua vida e que devia fazer parte também da vida dos seus seguidores[5]. Sendo assim, “Tomou o pão, deu graças, partiu e deu a seus discípulos (...) no fim da ceia tomou o cálice com vinho em suas mãos, deu graças e o deu a seus discípulos (...). As palavras que acompanham esses gestos simbólicos de Jesus é que traziam a novidade em relação à ceia judaica: Tomem e comam, isto é o meu corpo que será entregue por vocês (...). Tomem e bebam todos vocês, isto é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vocês (...). Façam isto para celebrar a minha memória.[6]
Celebrar a liturgia é, então, realizar o desejo de Jesus: fazer o que ele fez. Jesus envolve os discípulos no mistério de sua entrega e lhes dá a ordem de prolongarem no mundo os seus gestos para a salvação da humanidade. A sua ação salvífica se prolonga no mundo por meio da ação simbólica litúrgica. Através dela, fazemos memória do mistério da morte e ressurreição de Jesus, também chamado mistério pascal. A expressão hebraica zikkarôn e a grega anámnesis, traduzem uma realidade para além de uma simples recordação, uma simples lembrança. Trata-se de uma participação no fato lembrado, graças à participação no rito celebrado (Ex 13, 3-10)[7]. Neste sentido, a liturgia é festa da libertação, pois quem participa atenta e efetivamente dela está experimentando, no hoje da história, a libertação realizada pelo Senhor uma vez para sempre[8].

Axé!
Pe. Degaaxé


[1] “A liturgia é a vida da igreja e chamada a ser memorial do mistério pascal. A liturgia é a vida dos cristãos. Quando falamos liturgia, segundo a Sacrossanctum Concilium, existe um antes e um depois: o antes é o conhecimento da Palavra de Deus e o aprofundamento do que celebramos; o depois é a vida de caridade, o testemunho” (frase de D. Armando Bucciol, atual presidente da Comissão Episcopal para a Liturgia da CNBB, durante o Simpósio de Teologia, em Porto Alegre, dia 16 de junho de 2012).
[2] Cf. BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. O mistério celebrado, p. 33.
[3] ZILLES, Urbano. Significação dos símbolos cristãos., p. 23.
[4] Cf. SOUZA, Antônio Carlos de Oliveira. Tempos e festas da Liturgia. p. 78.
[5] Cf. BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. O mistério celebrado, p. 33.
[6] Ibid., p. 33.
[7] “Fazer memória vai para além do lembrar: Recordamos os feitos de Deus e pedimos que, na sua misericórdia, continue realizando maravilhas entre nós. A finalidade última da Eucaristia é tornar-nos um só corpo com Cristo. Fazer memória é participar do seu destino. Ao celebrar o mistério de Cristo a cada liturgia, vamos nos moldando ao mistério de Cristo para nos transformarmos nele, aderindo e assemelhando-nos a ele” (palavras do padre H. Farias, assessor de Liturgia da CNBB, durante conferência sobre Espiritualidade litúrgica, no VII Congresso de Entidades Negras Católica – CONENC, na cidade de Londrina, entre os dias 09 e 12 de fev. de 2012).
[8] “O mistério pascal de Cristo é celebrado, não é repetido. O que se repetem são as celebrações. Em cada uma delas sobrevém a efusão do Espírito Santo que atualiza o único Mistério” (palavras de D. Armando Bucciol, atual presidente da Comissão Episcopal para a Liturgia da CNBB, durante o Simpósio de Teologia, em Porto Alegre, dia 16 de jun. de 2012).

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