A constituição conciliar Sacrossanctum Concilium, quando utilizou a palavra “adaptação”,
referindo-se à Liturgia, quis desencadear uma sensível abertura do processo
celebrativo à mentalidade das diversas culturas nas quais a Igreja vai se
inserindo (cf. SC 38). A expressão “adaptação” implica em renovação pedagógica
e pastoral das celebrações litúrgicas, conforme os tempos e situações culturais
dos povos[1].
Para isso, o Concílio confiou à competência e ao zelo das Conferências
Episcopais a incumbência de estudar com os seus peritos os possíveis elementos
a serem oportunamente incorporados na liturgia, atendendo ao que era já anseio
de integrar nas diversas celebrações expressões da religiosidade popular[2].
Então, os bispos latino-americanos julgaram ser necessário, não somente
adaptar-se à realidade das diversas culturas, mas encarnar-se nela (cf. Med.
9.7), ou seja, possibilitar o uso da “criatividade” na liturgia, indo além da
adaptação, que apenas transplanta ou enxerta elementos culturais na liturgia[3].
“A meta da ‘criatividade’ é a introdução de novos
símbolos, mais compreensíveis do povo de hoje, porque criados pela piedade
popular ou experimentados nas CEBs e outros grupos de oração”[4].
Mas a “criatividade” deve alcançar um nível mais profundo, que é o da
“aculturação”. De um modo geral, “a aculturação” é definida como o domínio de
uma cultura sobre outra, mas, quando aplicada à liturgia, torna-se “um processo
dinâmico que se desencadeia quando a fé se instala nas bases de uma cultura”[5].
No que concerne à inculturação, o
processo é ainda mais profundo, pois “(...) incorpora ritos sociais ou
religiosos, dando-lhes sentido cristão, sem desfigurar sua natureza. A própria
liturgia romana assim se formou, incorporando, por exemplo, a festa pagã do Sol
invicto na celebração do Natal. Por esta inculturação a liturgia se propõe
continuar na História o milagre de Pentecostes quando, sob o impulso do
Espírito, multidões entendiam a linguagem única do amor e proclamavam as
maravilhas de Deus, expressando-se cada um em sua língua”[6]
Com a linguagem criativa dos gestos, da alegria, da dança, da acolhida, dos
símbolos, vai-se contribuindo para aprofundar a mensagem do evangelho de
Cristo, atualizando o seu mistério. É neste espírito que reflete o documento de
Aparecida, segundo o qual “a inculturação é vista como uma riqueza, pela
presença de novas expressões e valores, manifestando e celebrando cada vez
melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir fé e vida e assim contribuindo
para uma catolicidade mais plena” (DAp. 479).
Quanto mais inculturadas forem nossas liturgias, mais plena será a
participação das pessoas no mistério celebrado. Que sentido tem uma liturgia
totalmente dissociada da realidade das pessoas e indiferente à sua linguagem e
símbolos? Portanto, urge um esforço sempre maior para fazer com que a celebração litúrgica esteja em sintonia com a
identidade e as formas de comunicação próprias de nossa gente, ou seja,
possibilitar que a liturgia se expresse em símbolos e linguagem própria das
nossas culturas[7]. Tudo isso se justifica porque a Igreja não deseja impor
uma forma rígida e única na liturgia (cf. SC 37) e por isso, em seu cuidado
pastoral, tem orientado para uma maior sensibilidade junto às diversas
culturas, que acolhem e celebram o mistério de Jesus Cristo. Ela chama a
atenção para “a importância de deixar o povo se exprimir com gestos, símbolos,
dramatizações, numa celebração litúrgica adequada ao seu universo mental. Pois,
o gesto corporal ‘exprime e estimula os pensamentos e sentimentos dos
participantes”[8].
Percebemos, então, que a inculturação litúrgica é
útil e necessária, mas existem algumas exigências que devem ser levadas em
conta, se quisermos que a mesma aconteça de forma eficaz. Para isso, é preciso: a) conhecimento profundo da mensagem
cristã e da sua liturgia; b) conhecer profundamente a cultura, sobretudo as
cerimônias tradicionais e, com discernimento, ver o que é compatível com a
proposta celebrativa, evitando o sincretismo e a dupla pertença; c) coragem e
confiança na ação do Espírito que guia, ilumina e nos lança na aventura de
descobrir novas maneiras de rezar; d) lembrar de que a inculturação é uma
questão de fidelidade a Cristo e ao Espírito que enviam as pessoas de um lugar
para outro[9].
Tais passos são, ao mesmo tempo, desafios a serem
enfrentados e assumidos, corajosa e profeticamente, na fidelidade à missão que
o próprio Jesus Cristo confiou aos que o seguem. Trata-se de uma “fidelidade
criativa” que salvaguarda o conteúdo inalterável da
fé cristã, revestindo-o dos símbolos próprios que tem em conta os diversos
meios culturais, sociais e até mesmo os raciais (cf. EN 65). Os bispos
reconhecem que “entre nós os vários grupos étnicos, como os índios, os negros,
os orientais, apresentam muitos desses elementos, que já merecem ser
inculturados em nossas celebrações, sobretudo nos sacramentos”[10].
É atendendo a esta solicitação que iremos retomar nossa reflexão sobre a
inculturação da liturgia no meio específico das culturas afro-brasileiras, em
seu jeito criativo e dinâmico de celebrar. Até o próximo artigo!
Axé!
Pe. Degaaxé
[1]
Cf. CNBB. Animação
da vida litúrgica no brasil. doc. 43, n. 166.
[2]
Cf. Ibid., n. 182.
[3] Ibid., n. 174.
[4] Ibid., n. 174.
[5] Ibid. n.
177.
[6] Ibid., n. 179s.
[7] CNBB. Diretório para missas com grupos populares. doc. 11. n. 1.6.
Podemos verificar ainda, ao número 1.2.3 do mesmo documento o seguinte: “Uma
liturgia com o povo simples será tanto mais conforme ao seu gosto e capacidade
e tanto mais proveitosa, quanto mais se encarnar em sua experiência vivencial”
(Ibid., n. 2.3.1).
[8] CONGREGAÇAO PARA O CULTO
DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução
Geral do Missal Romano, n. 20.
[9]
Cf. LANGA, Adriano. A oração cristã e as
exigências da inculturação, p. 91.
[10]
CNBB. Animação
da vida litúrgica no brasil, n. 183.
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