sábado, 23 de julho de 2011

A SABEDORIA É O NOSSO MAIOR TESOURO NO SERVIÇO DO REINO: UMA REFLEXÃO NA ÓTICA DO POVO NEGRO

            Para esta reflexão, tomemos como base o texto da sabedoria de Salomão (1Rs 3, 5.7-12) e o texto sobre as três últimas parábolas de Jesus no capítulo 13 do evangelho de Mateus: o tesouro escondido, a pérola e a rede que apanha de tudo (Mt 13, 44-52).

Como já mencionei, o primeiro texto dá um destaque à figura de Salomão que, depois de ter ido a Gabaon oferecer sacrifícios a Deus, é interpelado por este em sonho. Deus toma a iniciativa de ir ao seu encontro, pois sabia de suas dificuldades, por ser tão jovem e inexperiente diante da grande responsabilidade de governar o Povo de Deus. Na verdade, Deus continua a guiar seu Povo, na pessoa dos reis que se deixam conduzir por ele.  Salomão é colocado à prova e responde sabiamente: não pede riqueza, nem poder, nem prestígio político. Pede um coração sábio e inteligente para governar o povo. Este pedido agradou muito a Deus que, não somente lhe concedeu o que ele pediu, mas lhe deu muito mais: ‘riqueza, glória e vida longa’.

A sabedoria, para Salomão é o maior tesouro a ser conquistado, sem o qual não é possível ser uma boa liderança, correspondendo à vontade de Deus e sendo aprovado por todos e todas. Para africanos e afrodescendentes, a sabedoria de alguém não se mede pelo acúmulo de conhecimentos acadêmicos, mas pela experiência de vida acumulada. É por isso que, na África, a figura considerada símbolo de sabedoria é a pessoa idosa. Chega-se até a dizer que ‘um idoso sentado enxerga mais longe do que um jovem de pé’. Existe ainda outro ditado popular africano que diz: ‘um idoso que morre é uma biblioteca que se fecha’. Não é sábia a atitude de afastar idosos de suas famílias e confiná-los num asilo para morrerem à míngua. O olhar da pessoa idosa que vive com dignidade aponta para a plenitude, para Deus. Sábio realmente é quem consegue olhar além. Todos os sábios são inteligentes, mas nem todos os inteligentes são sábios.

Esta reflexão nos permite fazer um gancho com a sabedoria popular. Algumas pessoas têm um dom nato para certos conhecimentos que não depende de livros e, ao mesmo tempo, os ultrapassam. Na África, são reconhecidos os Chefes de tribo, os Curandeiros, as Benzedeiras, as Rezadeiras, tão presentes e atuantes também em nossas culturas afrobrasileiras. É preciso reconhecer o valor desta gente, pois de modo algum tira o povo de ir para a Igreja e para missa. Pelo contrário, é um incentivo. Por exemplo, minha mainha é Ministra extraordinária da comunhão eucarística e é rezadeira, muito procurada pelos vizinhos. Minha avó era católica de boa participação, mas também benzedeira, rezadeira, parteira e iniciada no Candomblé. Ela tinha lá os seus segredos e conhecimentos a respeito do poder das ervas e das rezas, o que fazia com que todo o pessoal da vila viesse ao seu encontro para consultá-la, sem deixar, é claro, de ir à missa canonicamente. Não a coloco como modelo para ninguém, mas lembro que esta situação não impediu a mim e toda a minha família de sermos dedicados à Igreja. ‘É preciso descolonizar as mentes’ e eliminar os preconceitos, pois a vida está em jogo.

A sabedoria é dom que leva ao discernimento e vai dando verdadeira identidade ao discípulo de Cristo. Agindo sabiamente, a pessoa que decidiu seguir Jesus, vive a alegria de ter encontrado um precioso tesouro escondido. Esta pessoa investe o melhor de si, renunciando a tudo por causa deste tesouro. Este tesouro é a abundância de bens e de dons que Deus concede, em sua bondade, àqueles e aquelas que se põe a servi-lo. Na verdade, poder servir o Reino de Deus com sabedoria é o maior tesouro que a gente pode ter. Mas este serviço traz suas exigências: renúncias, desapego e despojamento. Recordemos a lógica do Reino: perder para ganhar. Nada se compara à grandeza e à beleza do tesouro e da pérola que é o Reino de Deus. Quando os encontramos ou quando nos deixamos encontrar no serviço do Reino, nada mais nos interessa.

O Reino de Deus é também como uma rede lançada ao mar, que apanha de tudo. Os pescadores procuram fazer o discernimento sobre o que se deve deixar e o que se deve aproveitar. Quem é tocado pela mensagem de Jesus, não possui para si a riqueza do Reino, mas tira do seu tesouro muita riqueza para partilhar com os irmãos e irmãs. Os afrodescendentes aprenderam a trabalhar com o melhor de si e não com o que fizeram deles. Isso nos faz lembrar uma frase de um autor: não importa o que fizeram de nós o que importa é o que fazemos com o que fizeram de nós. O Povo negro não é vingativo, é criativo. Tem retribuído o mal com o bem e, diante de situações de morte, têm manifestado muita vida através de seus valores, de suas capacidades, de sua alegria, do seu gingado, de sua luta, de seu axé. Até nisso o Povo negro demonstra muita sabedoria. É sábio quem não entrega o controle do seu ser para outros.

Precisamos pedir muito a Deus o dom da sabedoria para discernirmos o que realmente vale a pena em nossos relacionamentos com as pessoas e na evangelização de um modo geral. A alegria por termos encontrado o tesouro da vocação cristã encheu a nossa vida de sentido. Devemos partilhar com coragem e criatividade a riqueza do nosso tesouro com tantas pessoas, renunciando a todo preconceito e intolerância que impedem a manifestação da riqueza do Reino de Deus.


Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé

quinta-feira, 21 de julho de 2011

NOVAS CRISTOLOGIAS: ONTEM E HOJE

RESENHA



HURTADO, Manuel. Novas cristologias: ontem e hoje – algumas tarefas da cristologia contemporânea. In Persp. Teol. ano 40, n. 112, set/dez, 2008, p. 315-341.

O autor Manuel Hurtado SJ é doutor em teologia pelas Faculdades Jesuítas de Paris, (Paris, França), onde defendeu a tese intitulada La doctrine de l’Incarnation em théologie chrétienne des religions: Ses enjeux pour Le débat contemporain. É professor de teologia sistemática na Universidade Católica Boliviana (Cochabamba) e na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, FAJE (Belo Horizonte, MG). Trabalha no Departamento de Planejamento Acadêmico do Instituto Superior de Filosofia e Humanidades “Luis Espinal” (Cochabamba, Bolívia). Tem experiência no ensino da cristologia, antropologia teológica, teologia trinitária e teologia cristã das religiões.

O presente texto é um dos muitos artigos do nosso autor. Está distribuído didaticamente em três partes, com uma série de itens que favorece o interesse de quem lê. A primeira parte é uma análise breve sobre teologia do século XX, que, no início tinha um cunho apologético, dissociando cruz e ressurreição. Com o passar do tempo, essa unidade é recuperada e a própria cristologia, remete-se às suas origens bíblicas. A segunda parte fala das novas cristologias de hoje como caminhos dos seres humanos abertos à interpelação do Espírito de Cristo. Na terceira e última parte, temos as tarefas da cristologia contemporânea, com a reflexão de títulos já cultivados pelas comunidades cristãs para falar do mistério de Jesus Cristo: o Jesus Mediador, Caminho, Verdade e Vida e o Filho do Homem. A conclusão apresenta a identificação de Deus, em Jesus, com os pobres, manifestando a sua solidariedade e provocando uma nova práxis para a cristologia.

O autor Manuel Hurtado inicia seu artigo dizendo que o centro de nossa fé é a pessoa de Jesus de Nazaré que nos leva à comunhão de vida com o Pai e nos entrega seu Espírito. A reflexão teológica no principio do século XX, era de cunho neo escolástico, na qual estava praticamente ausente o tratado do Verbo encarnado da área da cristologia e o tratado da Redenção centralizava a salvação na cruz, dissociada da ressurreição. A nova cristologia terá uma visão integral do evento pascal compreendido como a unidade da passagem da morte à ressurreição. Cristologia e soteriologia, portanto, podem ser concebidas como dois aspectos de uma mesma realidade teológica. A própria cristologia terá que dar razões da fé, remetendo às origens, passando pelas Escrituras e assim enfrentar os problemas próprios ligados à história.

O nosso autor faz uma bonita consideração da vasta reflexão cristológica fora do contexto europeu, apontando, dentre as novas cristologias, algumas orientações: a primeira delas é Cristo e a libertação, que reforça a idéia da identificação de Cristo com a pessoa dos pobres, destacando a corrente feminista e afro-americana. A segunda orientação é Cristo e as culturas que refere-se às cristologias africanas na linha da inculturação: atribuir a Cristo certos aspectos e funções que têm grande importância em muitas culturas do contexto africano e asiático. A terceira orientação e a mais desafiante é Cristo e as religiões. A partir de teólogos como Raimon Panikkar, Aloysius Pieris e John Hick, o nosso autor apresenta as diferentes tendências na relação de Cristo com as demais religiões.

Diante disso, Hurtado propõe algumas tarefas para a cristologia contemporânea, privilegiando três títulos cristológicos para chegar a uma sistematização. Apresenta os títulos de Mediador, diferenciando de intermediário, o que o torna único, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; o de Caminho, Verdade e Vida, e o de ‘Filho do Homem’. Quer com isso resgatar unicidade de Jesus Cristo, sua Kenosis e a solidariedade com a humanidade, identificando-se com a sua realidade

Do ponto de vista didático, é inegável o esforço do nosso autor, apresentando em tão poucas páginas um conteúdo tão rico. Ele se revela muito seguro naquilo que diz, com uma linguagem muito clara e sintética, permitindo ao leitor, ter uma visão geral da caminhada e desenvolvimento da cristologia, especialmente com os seus novos rostos. Causou-me grande impressão o fato de ele ter destacado na primeira e última página a centralidade de Jesus. Assim como ele mesmo diz, na primeira página, que “o centro de nossa fé é a pessoa de Jesus de Nazaré” e “no coração desta teologia só pode estar a ‘figura’ de Jesus Cristo, ícone da revelação do mistério de Deus”, ele encerra afirmando: “o conhecimento pessoal de Jesus Cristo deve ser situado no coração mesmo da reflexão cristológica”. Esta mesma impressão prevalece no desenvolvimento de todo o texto. Trata-se de uma recentralização da pessoa de Jesus como nos é revelado nas Sagradas Escrituras, para um discurso consistente sobre ele.

É de se levar também em consideração o tema da humanidade de Deus quando o nosso autor destaca a identificação deste Deus com a humanidade ferida e desfigurada, colocando a pessoa dos pobres como o principal referencial. É a própria imagem de Deus que é atingida, pois, em Jesus, Deus quis ir até o mais desfigurado do ser humano e do humano, os pobres. Esta descida e identificação não foi para deixá-los do mesmo jeito, mas para ajudá-los a superar a realidade que os marginaliza, fruto de um modelo de sociedade  injusta, marcada por privilégios. Percebo uma forte proximidade com a reflexão realizada pela cristologia na América Latina, que tem o pobre como lugar teológico, “lugar privilegiado da cristologia”. Jesus experimentou na própria pele o que significa a pobreza por ter nascido pobre entre os pobres, sendo mais pobre que eles. É assim, portanto, em solidariedade para com estes, que ele manifesta a sua verdadeira humanidade. A verdadeira humanização passa pela libertação e dignidade dos pobres, os preferidos de Jesus.

            No seu conjunto, a “obra” traz valiosos elementos para estudo e debate na área da cristologia. Por isso a recomendo a professores e estudantes de teologia a fim de que deixem arder o coração, como é proposta final do nosso autor e façam a experiência do conhecimento e do encontro pessoal com este Deus-Homem que se faz caminho para que a cristologia, indo atrás dele, seja feita em caminho e tenha verdadeira consistência em seu discurso.



Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé


domingo, 17 de julho de 2011

COMUNIDADE E ANCESTRALIDADE: UMA REFLEXÃO NA ÓTICA DO POVO NEGRO

Após um período de retiro e formação, juntamente com os aspirantes, estou de volta com algumas reflexões que venho partilhando com os amigos e amigas que me acompanham. Para maior compreensão da reflexão abaixo, sugiro que leiam antes o texto de Eclo 44, 1-15. É a partir deste texto, lido e refletido na ótica do Povo negro, que apresentamos os pontos a seguir.
Quero retomar fazendo resgate de alguns aspectos que marcam a vida do afrobrasileiro. Entre eles está o aspecto da ancestralidade.  Quando se reflete teologia na África, ainda é muito forte a relação de Jesus Cristo com alguns títulos que são muito significativos para os africanos: Ancestral, Chefe de Tribo e Curandeiro por excelência. É claro que nenhum destes títulos abarca toda a realidade Jesus Cristo nem a sua função salvífica universal. Cristo, mesmo que tenha se identificado com a nossa realidade, não se limita a um determinado grupo ou cultura. No entanto, temos que admitir que esta experiência tem ajudado a muitos grupos africanos na compreensão inicial da mensagem cristã.
           Se tomarmos, por exemplo, o Povo Bantu, entre os quais a Comunidade é o centro de suas vivências, para eles Jesus é o Ancestre por excelência, por ter dado a vida pela Comunidade, lutando contra a sociedade injusta do seu tempo e resgatando o valor da pessoa acima de qualquer lei. O próprio Jesus nos ensina a valorizar também os que vieram antes de nós e que fizeram muito pela comunidade, quando resgata trechos da Escritura atribuídos aos profetas. Quando Ele leva os discípulos para o morro, para a experiência de auto-revelação, permite e valoriza a presença de Moisés e Elias. Também eles vão testemunhar em seus escritos a vinda deste, que nos garante vida em plenitude, por nos chamar a viver em comunidade.

           Falar de Comunidade na África é falar também de ancestralidade, pois a comunidade é compreendida como um conjunto de vivos e mortos (Ancestrais). Tudo o que se faz é em vista de resgatar a harmonia e unidade do princípio. Ainda se cultiva de maneira muito intensa uma dimensão unitária da vida. Não há divisão entre a realidade visível, material e a realidade sobrenatural. Muitos explicam esta dimensão profunda, atribuindo àquilo que se cultivava a muito tempo atrás: Órum, como espaço invisível e Aiyé, como espaço visível, não se desdobravam, ou seja, era uma coisa só. Por causa da falta a uma interdição, a existência se desdobrou: morada dos seres visíveis, as coisas materiais (os Ara-Aiyê) e dos Ancestrais, os seres espirituais (aqueles que não vemos, mas sentimos – os Ara-Órum).

Há pessoas que passaram em nossa vida e que se tornaram Ancestres e outras, que nem merecem ser lembradas. Isso é devido a que? O critério fundamental continua sendo a vivência comunitária. Há pessoas que não se encaixam, como se não tivessem sido feitas para isso, vivendo de uma forma totalmente egoísta, apenas para si mesmo. Por estas pessoas nem se deve chorar. Há outras que se sacrificam pela comunidade, pela família e, ao morrerem, jamais são esquecidas. Passam a ser invocadas para se conseguir proteção divina. Esta é uma realidade muito presente na África e que caracteriza o nosso convívio, enquanto afrodescendentes.

É importante nos darmos conta que para iniciarmos a caminhada de fé que hoje cultivamos, muitas pessoas foram determinantes; muitas pessoas nos falaram de Deus: nossos pais, nossos avós, nossos catequistas, padrinhos, e que já estão num outro plano da existência. Temos a obrigação de prestar-lhes nossa homenagem, não por serem mortos, mas por fazerem parte da nossa vida e serem também responsáveis pelos passos que demos e estamos dando. Nossos antepassados, portanto, também fazem parte da caminhada e continuam fazendo história com a comunidade.

A nossa visão de comunidade, portanto, tem que se ampliar. Quando vivemos a vida comunitária devidamente, cultivamos a mística da casa (ilê). E lembremos que, participar da casa, por um lado, é dividir com todos(as) o amparo, carinho  e proteção; de outro lado, resgatamos a importância da presença das pessoas: vivos, mortos e aqueles que hão de vir. Este é o princípio da ancestralidade que enriquece a nossa vida. Pela comunidade tem-se ininterruptamente a transmissão do axé. Quem vive em comunidade, tem a vida e se torna Ancestre, quem não vive a vida comunitária, está perdido, é um nada e morre para jamais ser lembrado. A experiência de comunidade, vivida ou não, portanto, vai definir o rumo da nossa existência. Louvemos ao Deus da vida e Deus comunitário pelo dom de ser e viver em comunidade, tornando ainda mais visível a sua essência e nos provocando a lutar contra toda forma de egoísmo e individualismo existente em nossa sociedade.

Modjumbá axé!
            Pe. Degaaxé   


sexta-feira, 8 de julho de 2011

ELE É A NOSSA SALVAÇÃO

RESENHA
 

GONZÁLEZ, Carlos Ignacio. Ele é a nossa salvação. São Paulo: Loyola, 1992, 510p.


O autor Carlos Ignacio González é sacerdote jesuíta, mexicano de Nayarit e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Além desta, possui outras obras: Na aurora do terceiro milênio; Maria: evangelizada e evangelizadora; Boa nova, A: Deus é Pai – meditações bíblicas.

A presente obra, de ampla temática e profundo conteúdo, nos ajuda a refletir sobre Jesus Cristo e sua missão de Salvador do mundo e Revelador do Projeto amoroso de Deus. Está dividida em quaro partes: a primeira reflete a ação poderosa de Javé que salva o seu Povo, fiel às suas promessas, preparando-o para acolher o seu Filho amado; a segunda, trata da presença de Jesus entre as pessoas, anunciando o Reino de Deus e convidando à conversão. A terceira é uma reflexão cristológica e soteriológica sobre o que a tradição antiga da Igreja oferece, desde os escritos do Novo Testamento até as cristologias clássicas. A quarta é uma retomada da reflexão da segunda e terceira partes, propondo o essencial para anunciar e viver Jesus Cristo hoje.

O testemunho das escrituras a respeito de Jesus Cristo é de que a sua identidade está intimamente ligada à sua missão salvadora. Se o conhecemos foi a partir da sua missão, assim como ensina também as sagradas escrituras. Todo o mistério de Cristo é salvífico, pois se nos revela amando. Estabelece uma relação familiar com Deus, chamando-o de Abbá, envolvendo os seus discípulos ao ensiná-los a rezar. Deste modo, atua sobre ele o Espírito Santo, enviado para santificação e consagração da sua humanidade, desde a encarnação à realização plena de sua missão em favor da humanidade.

A história da salvação é caracterizada pela promessa-cumprimento, pois Deus, em sua fidelidade à Aliança, realiza aquilo que promete. A realização destas promessas vai encontrar em Jesus a sua expressão máxima.  O centro de sua mensagem é o Reino de Deus. Ele é Javé que salva. Ele torna o Reino presente. Pelo seu modo de agir, pelos milagres e opções que faz, Jesus vai revelando também que os verdadeiros destinatários do Reino são os pobres, nas suas mais diversas feições. Jesus Cristo não só amou os pobres; a sua opção foi por uma vida de pobreza total, caracterizada pela sua entrega total ao Pai e às pessoas, cultivando uma total liberdade de coração frente a tudo o que poderia desviá-lo ou obstaculizar a sua fidelidade à missão. Neste mesmo sentido convida a todos os que desejam segui-lo para assumirem o caminho da entrega total da própria vida até a cruz. Assim, a morte de Jesus, por obra da injustiça e do pecado não é a última palavra no mundo, pois o Pai o ressuscita dentre os mortos. Nos últimos decênios, a partir do vaticano II, houve um aprofundamento maior nos aspectos salvíficos da ressurreição de Cristo.

Continuando sua reflexão, o autor diz que o anúncio de Jesus Cristo deve ter como base imprescindível a sua pessoa como Filho de Deus e de Maria, consubstancial ao Pai e igual a nós em tudo, menos no pecado. Caso se omita o anúncio, quer da divindade de Cristo, quer da sua humanidade, anula-se o seu papel de mediador entre Deus e os seres humanos. A santidade humana de Jesus manifesta-se numa plenitude e, ao mesmo tempo, num crescimento da graça; santidade que não supõe ausência da tentação, antes, pelo contrário, implica a experiência de tudo o que há de humano, por solidariedade conosco.  O conhecimento humano de Jesus Cristo - sem negar o divino - passa pela experiência real do crescimento, da ignorância de dados necessários ao cumprimento da sua missão, o que denota uma perfeição em desenvolvimento, igual ao progresso de qualquer perfeição verdadeiramente humana na situação de peregrinos. E, no entanto, resplandece por todo o Evangelho, unido ao anterior e sem negá-lo, um saber supra-humano de Jesus Cristo. Por isso podem-se distinguir nele, de forma semelhante ao que sucede com qualquer um de nós, vários níveis de conhecimento e de consciência. Níveis estes que, como em nós (analogamente), não se contrapõe nem se aniquilam mutuamente; mas operam em perfeita harmonia.

Só a partir da realidade da nossa libertação por Cristo podemos compreender o que seja verdadeiramente o pecado: uma destruição da nossa comunhão com o Pai, com a conseqüente ruptura da comunhão fraterna. Por isso, não existe pecado estritamente pessoal, que não faça sentir as suas conseqüências sociais. Pecado que, em cada tempo e lugar - e também na nossa América Latina - se exibe configurado em rostos diversificados nas suas vítimas, nas estruturas sociais e políticas, mas cujas raízes estão no coração do ser humano que se exclui do amor divino e humano. Por isso, a salvação que Jesus Cristo nos oferece como um dom e que nós devemos adquirir com a nossa cooperação é uma libertação integral, primeiro do pecado do nosso coração, mas com uma conversão ligada imediatamente à mudança de tudo aquilo que, na comunidade e na sociedade, construímos sob o signo do pecado.

Quero salientar a riqueza que é a presente obra, tanto pelo conteúdo como pela didática metodológica assumida. Impressiona o aparato bibliográfico e as reflexões profundas, que tornam mais compreensível e acessível a realidade de Jesus Cristo, no seu mistério divino e na sua identificação com a realidade humana, especialmente, ao priorizar os mais pobres no reino, amando-os e encontrado como eles. É na identificação com este projeto que surgiram as primeiras comunidades, cultivando um estilo de vida simples e despojado, conforme a realidade onde se encontravam, assim como também inúmeros discípulos em todas as épocas, em fidelidade ao Mestre, tornaram real em suas vidas e ministério o estilo simples e despojado. Cada capítulo da obra é finalizado com pistas pastorais e dicas de reflexão espiritual pessoal, com a indicação de leituras correlacionadas. Realmente, o nosso autor pensou esta obra como um manual a ser utilizado nos diversos momentos da caminhada. Acredito que o nosso autor poderia ter explorado mais a questão mariana, relacionada com a obra de Cristo e não apenas mencionar o seu nome (discretamente). Para mim, esta foi uma lacuna lamentável. Mas no seu conjunto, a obra cumpre a sua finalidade, enquanto análise profunda da Obra de Jesus Cristo, o Salvador da humanidade.

Em tempos como os nossos, precisamos de boas referências de leitura e aprofundamento dos conteúdos da fé e este é um texto que se serve muito bem neste sentido. Por isso eu o indico, não somente para professores e estudantes universitários, mas a todas as pessoas que desejam seguir Jesus de forma consistente, aprofundada e consciente, dando razões de sua fé.



Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé

quarta-feira, 6 de julho de 2011

JESUS DE NAZARÉ, APROXIMAÇÃO À CRISTOLOGIA

RESENHA


CARDEDAL, Olegario Gonzalez de. Jesús de Nazaret: aproximación a la cristología. 3ª ed., Madrid: Biblioteca de autores cristãos, 1993.

             O autor Olegario Gonzalez de Cardedal doutorou-se em Teologia pela Universidade de Munique, estendido os estudos em Oxford e Washington. Tem sido por muitos anos professor da Pontifícia Universidade de Salamanca até sua aposentadoria em 2004 e é membro da Real Academia de Ciências Morais e Políticas . Ele era um colaborador de Xavier Zubiri e colega e Karl Rahner. É autor de diversas obras, entre as quais O poder e a consciencia de 1984 e a presente obra que estamos a analisar: Jesús de Nazaret. Aproximación a la cristología (1993).

 A presente obra é uma análise da cristologia entre os anos 1973 a 1993. Destaca idéias fundamentais, as preocupações recentes em cristologia, procurando descobrir seus valores e limites. Apresentando algumas tarefas que se deverão ser levadas adiante nos próximos anos. A mesma está dividida em seis capítulos. O primeiro capítulo trabalha o horizonte dos anos setenta, falando da preocupação da teologia, através de uma nova hermenêutica, que tem sido a de recuperar a figura histórica de Jesus como o que vem de Deus, se encarna no mundo e nos traz a salvação. O  segundo capítulo, fala da necessidade de distinguir o Jesus terrestre do Jesus histórico; o primeiro, que viveu e morreu, é confessado pela Igreja como Cristo e Filho de Deus, a partir da ressurreição; o segundo é construção dos investigadores, o qual não é necessário para a fé. O terceiro capítulo traz uma compreensão renovada da cristologia a partir do Novo Testamento, tendo presente a posição de alguns concílios sobre a essência da Trindade e as formas de cristologia que são convidadas a pensar Cristo como verdade da realidade, alma do sujeito e potencia da ação. O quarto capítulo fala da soteriologia ocupando o centro das atenções nestes últimos tempos, como parte integrante da obra de Cristo. Trata-se da redenção total do ser humano e do mundo. O capítulo quinto refere-se a alguns problemas fundamentais para a Cristologia que se vê desafiada a rever sua teoria tradicional e a acolher novas reflexões, com acento ao diálogo e respeito frente a outras tradições religiosas. O capítulo sexto fala de um futuro que se abre exigindo da cristologia um contato renovado com a Bíblia em abertura e diálogo com as diversas correntes messiânicas e hermenêuticas contemporâneas, assumindo o ser humano em sua totalidade.

Segundo o nosso autor, a partir do concílio Vaticano II, a preocupação da Igreja tem sido mostrar a universalidade humana do Evangelho e a transcendência histórica e não só teológica da pessoa de Jesus. A tarefa da cristologia hoje é integrar esta recuperação histórica de Jesus com a fé anterior da Igreja, fazendo convergir a humanidade com a divindade de Jesus, elaborando uma idéia de sujeito, de pessoa e de destino que nos permitam contemplar a pessoa una e única de Jesus Cristo em sua realização histórica e em seu mistério divino.

Ao diferenciar o Jesus terrestre do Jesus histórico, o nosso autor diz que o Jesus terrestre é fundamento da nossa fé que revela o projeto de Deus. É, portanto, dom de Deus e fruto da tradição da Igreja. O Jesus histórico trata-se de uma reconstrução científica da vida de Jesus, determinada pela sensibilidade de cada investigador. Sua reconstrução é artificial e não é necessário nem normativo para a fé. O Jesus que aqui ele insiste é aquele que, o anúncio do Reino de Deus, traz a grande novidade para o mundo. E a grande novidade que Jesus traz é a identificação da essência divina nas suas ações humanas. Ele revela a solidariedade vitoriosa de Deus na sua vida e morte pela humanidade, a qual entra como expressão máxima e coerência com a sua mensagem.  E, como são necessários três pólos para compreender a Jesus - Reino-Morte-Ressurreição - a nossa reflexão não pára na morte, pois se valorizamos sua palavra e ação, e se celebramos sua paixão e morte é porque ele foi reconhecido vivo e glorificado. Portanto, os três são inseparáveis e irredutíveis.

Citando alguns concílios, Cardedal nos faz pensar a realidade do Deus cristão como uma comunhão de pessoas e não solidão. E a salvação que Cristo oferece é a manifestação desta vida e comunhão intratrinitárias, reconstruindo e envolvendo toda a história humana, ferida pelo pecado. É Deus quem oferece a redenção e a reconciliação ao ser humano; oferece sua amizade e convida a uma aliança. Nestes últimos anos a cristologia tem buscado um contato renovado com a Bíblia em abertura e diálogo com as diversas correntes messiânicas e hermenêuticas contemporâneas. Faz-se necessária uma reflexão integradora da ordenação sistemática, sem deixar de lado uma cristologia espiritual que assuma o ser humano em sua totalidade, que alimente sua fé, esperança e amor a fim de que Jesus seja acolhido como Cristo e Salvador em sua vida.

Penso que não é uma tarefa fácil comentar o autor Cardedal pela riqueza que é esta sua obra. A reflexão cristológica, certamente tem neste autor um forte expoente para seu desenvolvimento. Ele não nega ser alguém muito polêmico pelas provocações que apresenta, desafiando a uma mudança de postura diante da realidade contemporânea que demanda uma cristologia que apresente Cristo sem meias medidas e muitos rodeios, mas que seja acessível, assim como foi o seu desejo.

Quero destacar ainda a reviravolta comentada pelo nosso autor a respeito da postura da Igreja depois do Concílio Vaticano II. Deixa-se de lado uma leitura tradicional, dogmática que excluía mais do que atraía e esforça-se para falar de Deus a partir de uma historia e de um homem concreto. Muito mais do que longos discursos ou complicados conceitos, esta é a boa notícia que, como Igreja, nos últimos anos, tem oferecido a um mundo sempre mais sedento de sentido. Permanece o desafio de uma intensificação das propostas do concílio para não por freios a ação livre e fecunda do Espírito.

A impressão que se tem é de que o nosso autor não tem a preocupação de que um assunto leve a outro ou de que um capítulo dependa do outro. Sua preocupação é fazer provocações. Acredito que se houvesse outra didática na apresentação da obra, seria muito mais fácil a compreensão (refiro-me ao ensejo de subitens). Os capítulos são longos e a linguagem é bastante rebuscada. Por isso a recomendo para professores e universitários que desenvolvem suas pesquisas voltadas para as novas correntes cristológicas e para o diálogo com as diferentes tradições religiosas.



Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé


terça-feira, 5 de julho de 2011

A REVELAÇÃO DE DEUS NAS CULTURAS AFROBRASILEIRAS

           Tomando como referência do teólogo e autor Torres Queiruga, consideramos que não há uma relação de dependência entre cristianismo e as demais religiões e sim uma relação dialética. Isso não significa que todas as religiões são igualmente reveladoras, embora  que ‘todas as religiões são verdadeiras’. Também se tomarmos a tradição bíblica, perceberemos que muitos elementos são reveladores, mas outros não exercem este papel, pelo contrário, são ‘encobridores’. Assim como precisaram se purificar de muitas posturas para discernir a vontade de Deus, devem considerar que outras tradições religiosas, de diferentes modos, também o fazem. Neste sentido, o autor Volney J. Berkenbrock recorda que “a ação do Espírito que prepara e realiza a obra salvadora de Jesus Cristo, não se limita apenas à Igreja. Ele age na história de toda a humanidade”.

É nesta ótica que precisamos analisar as tradições religiosas afrobrasileiras, as quais cultivam uma compreensão diferenciada de Deus. Ele é o Ser supremo, incriado e criador, que se revela na vida, na natureza e age através de intermediários, para fazer-se próximo dos seus filhos e filhas, como sabiamente descreve o autor A. A. SILVA, de saudosa memória:

“As experiências banto e nagô eram exatamente de um Deus supremo criador. Não prestavam cultos em templos ou santuários. Para bantos e nagôs, a natureza é o santuário de Deus, e a terra, o altar da sua oferenda. Possuem uma experiência mística de profunda comunhão com a divindade. Através dos Orixás, Deus se faz presente em cada pessoa”.

Neste sentido, o universo visível e a realidade transcendente formam uma só unidade. Não há uma separação entre o sagrado e a vida real. O sagrado está no cotidiano e se expressa através deste. Assim, o horizonte último não pára no mundo visível, mas mergulha no universo sagrado. O próprio mundo visível – Aiyê -  é visto de uma maneira espiritual, como um prolongamento do universo invisível - Órum... Deus se revela como um Deus comunitário, que salva, não somente o indivíduo, mas todo o povo. A família, neste processo, é fundamental como base para construção e compreensão comunitária. A experiência familiar vai se intensificando na própria celebração, na qual o Deus da vida é experimentado de modo muito pessoal e, ao mesmo tempo, comunitária. Na alegria dos que preparam a festa e na solidariedade do trabalho, Deus se revela como Deus-amor. Neste sentido, Torres Queiruga vai ainda mais além, ao considerar que:

“A Revelação é tudo: desde o rito no qual se presencializa a ação primordial divina, até o mito, no qual a experiência do Sagrado se converte em expressão fabuladora, desde a oração, onde o Divino se faz presença dialogante, até a ação moral, onde é simples presença que manda, ampara ou julga, desde o templo e os lugares onde a presença se configura, até as mil modalidades de hierofanias, nos quais aparece a infinita riqueza de seu rosto, ou inclusive até o tabu, onde se manifesta o aspecto negativo de seu poder”.

Isso quer dizer que a revelação não pode ser reduzida à sua manifestação, formalizada só no ato divino, mas deve-se considerar também a contribuição humana no processo revelador. A revelação – seja lá o que for, em sua essência mais íntima – não apareceu como palavra feita, como oráculo de uma divindade escutado por um vidente ou adivinho, ou como se fosse um ditado divino (concepção tradicional), “mas como experiência viva, como ‘dar-se conta’ a partir das sugestões e necessidades do que estava em volta e apoiada no contato misterioso com o sagrado. É vontade de Deus revelar-se nas e através das religiões para que seus bilhões de filhos de filhas experimentem, na fé, seus constantes auxílios. Por isso que, acima de tudo, é preciso ter respeito e diálogo para não pretendermos fechar em nossas concepções limitadas o jeito ilimitado e criativo de Deus se revelar.

Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé

domingo, 3 de julho de 2011

ESSE DEUS QUE DIZEM AMAR O SOFRIMENTO

RECENSÃO


VARONE, François. Esse Deus que dizem amar o sofrimento. 2ª. ed., Aparecida, SP: Santuário, 2001, 299p.

             O autor François Varone é um renomado teólogo da França, que consegue, com uma capacidade incrível, apresentar questões polêmicas da fé em linguagem muito simples. Ele escreveu também Esse Deus ausente que é um problema, pela Cerf, em 1981.


             O autor, na presente obra, nos ajuda a refletir com profundidade sobre o sentido do sacrifício de Cristo, que não se trata de um sofrimento compensatório, mas revelação do amor e da misericórdia de Deus. Está dividida em seis longos capítulos: o primeiro capítulo nos introduz na teoria da satisfação, que faz da morte de Jesus um em si, um pacote de sofrimentos como valor de uma troca e mostra uma panorâmica sintética de todos os demais capítulos. No segundo capítulo, o autor serve-se de Elias, um modelo de profeta do Antigo Testamento, para esclarecer a ação profética de Jesus. No terceiro capítulo, ele empenha-se em tirar as barreiras da morte de Jesus e colocá-las em relação com a sua vida e sua ação profética. No quarto capítulo, através da carta aos Hebreus e da carta aos Romanos, ele mostra uma unidade inquebrável entre morte e ressurreição, trazendo uma estrutura de revelação que funda e anima a experiência da fé. No quinto capítulo, aponta perspectivas novas a partir da relação entre o primeiro e o novo Adão, não como compensação e restituição, mas como revelação e aperfeiçoamento. No sexto capítulo, ele passa da prática profética de Jesus à prática pessoal do crente. Conforme o processo de revelação, a salvação é a vida concreta do ser humano.

Segundo o Varone, antes de ser uma mensagem, o cristianismo é uma experiência de salvação, integrando em si todos os aspectos da existência humana, particularmente o sofrimento e a morte. Entre sangue e salvação, a síntese se fez sob o signo da religião e essa síntese traz um nome: a‘satisfação’. Jesus, sofrendo e morrendo na cruz, substituindo aos seres humanos pecadores, compensou por eles a ofensa infinita feita a Deus por seus pecados. Seria justiça se Deus deixasse o ser humano na situação em que se encontrava, mas não seria justiça completa, pois se é justo que o pecado seja punido, pertence à justiça divina igualmente que a ofensa seja reparada.

Seguindo sua reflexão, o autor fala especificamente da morte de Jesus, como conseqüência lógica de seu engajamento profético. Ao invés de dizermos: ‘Jesus morreu por nossos pecados’; é preciso dizer: ‘Jesus não morreu por nossos pecados, mas Jesus morreu por causa de seu combate profético levado até o fim’.Ele parece morrer como um fracassado, mas, para além do fracasso, é preciso descobrir o valor salvífico e universal de sua morte. Diferentemente do que nos fez pensar a tradição cristã ulterior, através da teoria da satisfação, é preciso reconhecer que Jesus realiza o misterioso servo de Deus de Isaías, não por substituição e compensação formal, mas antes pelo investimento concreto de sua prática a serviço da libertação dos oprimidos.

Neste sentido, é feita uma análise da linguagem do sacrifício judaico. Neste sacrifício que Deus dá ao povo para celebrar – esboço do sacrifício de Cristo - é Ele que abre ao povo a possibilidade de ter acesso de novo ao Deus da aliança e de encontrar na comunhão com Ele sua própria perfeição de povo de Deus. Com Jesus, não tem mais necessidade de sacrifício para ter acesso a Deus, pois toda a sua vida é percebida como acesso a Deus; toda sua vida é compreendida como sacrifício, o sacrifício definitivo, realizado ‘de uma vez por todas’. A vontade de Jesus é de fazer da vida humana, com sua fraqueza, seus sofrimentos e enfim sua morte, um caminho para a vida, para a consumação, a perfeição. A prova disso é a ressurreição: é nesse acontecimento, que o julgamento de Deus aparece enfim em toda a plenitude de sua ação em favor do ser humano. Portanto, na revelação acontece o processo fundamental pelo qual Deus salva em Jesus Cristo. Na troca compensatória, o valor é o sofrimento; na revelação, o sentido é a libertação do desejo do ser humano.

O autor Varone procura desmitificar a falsa compreensão do sofrimento de Cristo, lembrando que de modo algum é um valor em si. Jesus não procurava sofrer, mas viver uma prática positiva, mesmo se devesse sofrer cruelmente por causa dela. Jesus não devia nem queria sofrer em nosso lugar, mas antes investir sua vida até o fim para libertar nosso desejo e nos salvar. O sofrimento é para Jesus a ocasião de revelar o amor que tem para conosco e, para nós, a possibilidade desconcertante de o reconhecer. Assim a direção da fé está centrada no sacrifício do Cristo e isso quer dizer na prática histórica levada até a morte e desembocando na ressurreição, prática em que Deus inaugurou e revelou a finalidade infinita da existência humana. Desde então, numa caminhada de Igreja que faz memória deste sacrifício, atualizando-o cotidianamente, o que é importante não é o rito celebrado pelo sacerdócio, não é o poder especial da casta sacerdotal, mas antes a prática real dos crentes e seu poder real de atingir a realidade humana para lutar contra as mentiras dos poderes humanos e nessa realidade por a verdade do Deus diferente.

É uma obra muito rica e de um imenso valor profético. Estou realmente impressionado e desconcertado com esta linguagem mais humana e leve sobre o“peso” do sofrimento de Cristo. O autor François Varone, com muita sabedoria e ousadia, restitui o cristianismo à sua vocação original: não ser uma religião da compensação, mas uma prática da liberdade como honra rendida a Deus e reconhecimento de seu amor. Como ele mesmo recorda: nós, muitas vezes, como Elias, apenas reproduzimos estruturas de domínio, apegando-nos a certa posição ou encargo que mais aterrorizam as pessoas do que as ajudam numa caminhada de crescimento e amadurecimento da fé. A nossa prática cristã perde sua razão de ser quando buscamos apenas ser servidos e não servir. Devemos nos perguntar sempre: que imagem de Deus eu reproduzo com o meu jeito de viver a fé? Se não cuidarmos, a imagem do Deus de amor e misericórdia revelado por Jesus ficará ofuscado diante de práticas que reforçam a imagem de um Deus carrasco e dominador, que vive exigindo sacrifícios das pessoas.

Inegavelmente, esta obra leva a uma desconstrução de toda uma mentalidade sacrificialista, que se opõe à fé e convida a uma nova postura na reflexão teológica, que visa ajudar as pessoas a acolher no gesto salvador de Cristo, a pura gratuidade e generosidade de Deus. Assumido no amor, ele revela até onde pode ir o amor daquele que manifesta Deus. Jesus convidou os discípulos a deixar tudo, a ir para a outra margem, a oferecer a outra parte, a assumir a cruz e segui-lo, ou seja, Jesus tinha uma prática que contagiava e o sacrifício pessoal do discípulo faz parte de uma decisão também pessoal no seguimento de Jesus. Assim como outrora, Jesus continua desafiando as pessoas a uma postura mais comprometida que vá na contramão do poder e da violência. A reflexão sobre o sofrimento de Cristo, purificada de toda a dimensão compensatória, nos levar a um desejo maior de imitá-lo em sua fidelidade ao projeto de Deus, sendo agentes de transformação diante das injustiças e solidários com os crucificados de ontem e de hoje.

Eu indico a presente obra aos professores, estudantes de teologia e também a catequistas e agentes de pastoral, para que se convençam de que o pano de fundo do sacrifício de cristo não é um querer divino, mas um comprometimento sem par com a realidade humana, compreensível somente no nível do mistério do amor de Deus.



Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A REVELAÇÃO DE DEUS NAS RELIGIÕES: Uma reflexão a partir do teólogo Andrés Torres Queiruga

           Deus se revela por amor e bondade, fazendo-se próximo ao ser humano. Esta realidade se evidencia no imenso universo criado e aí o ser humano consegue descobrir uma fala de Deus, pois toda natureza é revelação sua. Mas esta não responde aos enigmas profundos da condição humana. Esta resposta o ser humano vive procurando por meio das religiões. É nelas que ele consegue expressar os seus profundos anseios, seus maiores segredos, desejos, sonhos, aspirações e carências, fazendo a experiência do divino que se faz encontrar. Interpretando esta realidade, o autor Andrés Torres Queiruga, considera a religião como “a tomada de consciência da presença do divino no mundo”. E esta presença não é passiva e estática. Pelo contrário, envolve todo o universo num processo dinâmico, de contínua renovação, revelando-se como o Deus da vida. Reforçando esta idéia, ele cita J. Martin Velasco, que diz: “o sujeito religioso (...) interpreta sua busca de Deus como suscitada por um prévio encontro com ele e no qual Deus mesmo tomou a iniciativa.   Em outras palavras, Deus se antecipa ao coração humano, suscitando o desejo por ele.

Torres Queiruga recorda algo fundamental, que não teve, ao longo da história, uma interpretação justa: “Deus escolhera um povo, ao qual somente entregara a revelação sobrenatural, deixando todos os outros no estado de uma religião natural”.  Esta concepção talvez tenha dado o direito de desprezar os demais, considerando que, fora do povo eleito, era tudo trevas. Uma frase que ilustra muito bem isso é: “Eu te farei luz das nações”, que aparece não somente uma vez, reforçando ainda mais a compreensão (Is 42, 6; 49, 6; At 13, 47). Este particularismo salvífico, segundo o nosso autor, se apoiava em uma visão de mundo muito limitado e que até justifica, num certo sentido, a visão unilateral de salvação, levada adiante pela Igreja, por certo período. Esta visão, por sorte foi superada quando o concílio vaticano II reconheceu a verdade e a eficácia salvadora das outras religiões.

Torres Queiruga reconhece que a revelação de Deus não tem fronteiras, ou seja, Deus é livre para se revelar em outros espaços, porque justamente o seu amor é sem fronteiras. As religiões, no fundo, buscam configurar de forma visível esta descoberta e por isso se consideram reveladas. “E é preciso sempre partir, portanto, do princípio de que todas as religiões são verdadeiras e constituem, por isso mesmo, caminhos reais de salvação para os que honestamente os praticam”.

Como, então, interpretar o privilégio da eleição de um povo por parte de Deus? O nosso autor nos responde sinteticamente com duas idéias:

“A primeira é a ‘presença real’ – salvadora e reveladora – de Deus no coração de toda a história dos homens, traduzida mais concretamente nas religiões. Isto deve eliminar pela raiz todo esquema subconsciente que tenda a manter a equação cristianismo/religiões = revelação/não-revelação.
A segunda se refere ao fato de que a ‘eleição’ é uma necessidade histórica que não consiste em privilegiar para separar, e sim em ‘intensificar’ a uns para chegar melhor a todos. Aqui o esquema subconsciente a eliminar é o de ‘nós sim’/’os outros não’, normalmente traduzido em ‘nós verdadeiros’/’os outros falsos’”.

Estas duas formulações nos permite considerar que há duas dimensões: crística e cristã. A dimensão crística acena para as ‘sementes do Verbo’ espalhadas, desde o princípio, no seio das culturas, tendo a religião como seu coração. A dimensão cristã tem como centralidade o evento Jesus Cristo e a reformulação de seus ensinamentos e práxis pelas Primeiras comunidades. O nosso autor continua:

“Quando se examinam de perto as riquezas do budismo ou da tradição hinduísta, quando se admira a grandeza de Zaratustra e também, em tantos aspectos, a Mahoma, já não se pode continuar crendo, sem ferir o senso comum, que fora da Bíblia tudo são trevas ou que as outras práticas religiosas têm sua origem no diabo (...) As religiões, cada uma delas, são totalidades complexas de resposta ao divino, 'com suas diferentes formas de experiência religiosa, seus próprios mitos e símbolos, seus sistemas teológicos, suas liturgias e sua arte, suas éticas e estilos de vida, suas escrituras e tradições - todos elementos que interagem e se reforçam mutuamente. E estas totalidades diferentes constituem diversas respostas humanas, no contexto das diferentes culturas ou formas de vida humana, à mesma realidade divina, infinita e transcendente'”.

        Esta reflexão, certamente deve nos levar a repensar nossas posturas com relação à alteridade, à diferença. Já sabemos a que desastres podem levar certas posturas preconceituosas (confira no artigo deste blog sobre racismo). No relacionamento com pessoas de outras religiões, procuremos usar o melhor de nós para possibilitar a mesma atitude da outra parte e nos enriqueceremos mutuamente. Nisto consiste a verdadeira sabedoria. Que Deus nos ajude!

Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé