domingo, 17 de julho de 2011

COMUNIDADE E ANCESTRALIDADE: UMA REFLEXÃO NA ÓTICA DO POVO NEGRO

Após um período de retiro e formação, juntamente com os aspirantes, estou de volta com algumas reflexões que venho partilhando com os amigos e amigas que me acompanham. Para maior compreensão da reflexão abaixo, sugiro que leiam antes o texto de Eclo 44, 1-15. É a partir deste texto, lido e refletido na ótica do Povo negro, que apresentamos os pontos a seguir.
Quero retomar fazendo resgate de alguns aspectos que marcam a vida do afrobrasileiro. Entre eles está o aspecto da ancestralidade.  Quando se reflete teologia na África, ainda é muito forte a relação de Jesus Cristo com alguns títulos que são muito significativos para os africanos: Ancestral, Chefe de Tribo e Curandeiro por excelência. É claro que nenhum destes títulos abarca toda a realidade Jesus Cristo nem a sua função salvífica universal. Cristo, mesmo que tenha se identificado com a nossa realidade, não se limita a um determinado grupo ou cultura. No entanto, temos que admitir que esta experiência tem ajudado a muitos grupos africanos na compreensão inicial da mensagem cristã.
           Se tomarmos, por exemplo, o Povo Bantu, entre os quais a Comunidade é o centro de suas vivências, para eles Jesus é o Ancestre por excelência, por ter dado a vida pela Comunidade, lutando contra a sociedade injusta do seu tempo e resgatando o valor da pessoa acima de qualquer lei. O próprio Jesus nos ensina a valorizar também os que vieram antes de nós e que fizeram muito pela comunidade, quando resgata trechos da Escritura atribuídos aos profetas. Quando Ele leva os discípulos para o morro, para a experiência de auto-revelação, permite e valoriza a presença de Moisés e Elias. Também eles vão testemunhar em seus escritos a vinda deste, que nos garante vida em plenitude, por nos chamar a viver em comunidade.

           Falar de Comunidade na África é falar também de ancestralidade, pois a comunidade é compreendida como um conjunto de vivos e mortos (Ancestrais). Tudo o que se faz é em vista de resgatar a harmonia e unidade do princípio. Ainda se cultiva de maneira muito intensa uma dimensão unitária da vida. Não há divisão entre a realidade visível, material e a realidade sobrenatural. Muitos explicam esta dimensão profunda, atribuindo àquilo que se cultivava a muito tempo atrás: Órum, como espaço invisível e Aiyé, como espaço visível, não se desdobravam, ou seja, era uma coisa só. Por causa da falta a uma interdição, a existência se desdobrou: morada dos seres visíveis, as coisas materiais (os Ara-Aiyê) e dos Ancestrais, os seres espirituais (aqueles que não vemos, mas sentimos – os Ara-Órum).

Há pessoas que passaram em nossa vida e que se tornaram Ancestres e outras, que nem merecem ser lembradas. Isso é devido a que? O critério fundamental continua sendo a vivência comunitária. Há pessoas que não se encaixam, como se não tivessem sido feitas para isso, vivendo de uma forma totalmente egoísta, apenas para si mesmo. Por estas pessoas nem se deve chorar. Há outras que se sacrificam pela comunidade, pela família e, ao morrerem, jamais são esquecidas. Passam a ser invocadas para se conseguir proteção divina. Esta é uma realidade muito presente na África e que caracteriza o nosso convívio, enquanto afrodescendentes.

É importante nos darmos conta que para iniciarmos a caminhada de fé que hoje cultivamos, muitas pessoas foram determinantes; muitas pessoas nos falaram de Deus: nossos pais, nossos avós, nossos catequistas, padrinhos, e que já estão num outro plano da existência. Temos a obrigação de prestar-lhes nossa homenagem, não por serem mortos, mas por fazerem parte da nossa vida e serem também responsáveis pelos passos que demos e estamos dando. Nossos antepassados, portanto, também fazem parte da caminhada e continuam fazendo história com a comunidade.

A nossa visão de comunidade, portanto, tem que se ampliar. Quando vivemos a vida comunitária devidamente, cultivamos a mística da casa (ilê). E lembremos que, participar da casa, por um lado, é dividir com todos(as) o amparo, carinho  e proteção; de outro lado, resgatamos a importância da presença das pessoas: vivos, mortos e aqueles que hão de vir. Este é o princípio da ancestralidade que enriquece a nossa vida. Pela comunidade tem-se ininterruptamente a transmissão do axé. Quem vive em comunidade, tem a vida e se torna Ancestre, quem não vive a vida comunitária, está perdido, é um nada e morre para jamais ser lembrado. A experiência de comunidade, vivida ou não, portanto, vai definir o rumo da nossa existência. Louvemos ao Deus da vida e Deus comunitário pelo dom de ser e viver em comunidade, tornando ainda mais visível a sua essência e nos provocando a lutar contra toda forma de egoísmo e individualismo existente em nossa sociedade.

Modjumbá axé!
            Pe. Degaaxé   


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