quarta-feira, 25 de julho de 2012

AGENTES DE PASTORAL NEGROS, “SEMENTE” DA PASTORAL AFRO.

Introdução    
             Este breve texto resgata um pouco da história dos APNs e a sua relação frutuosa com a Pastoral afro-brasileira. Embora que atualmente existem juntos e com caminhos diferentes, deve-se reconhecer que os APNs são “semente” plantada em terra boa, da qual saiu a Pastoral afro. Chamamos de Pastoral afro à articulação oficial da CNBB, surgida em 1996, enquanto que os APNs surgiram em 1983. Esses dados não querem desmerecer as iniciativas de resistência e promoção da comunidade negra desde que o primeiro negro ou negra pôs os pés nessas terras como escravo ou escrava. Esta reflexão nos permite encontrar respostas para os seguintes questionamentos: o negro deve deixar de ser negro para ser cristão? Pode um negro ser um cristão autêntico se nega a sua negritude? Como as práticas dos (as) agentes da pastoral afro podem contribuir para a construção de outra sociedade possível? Estas questões trazem uma inquietação muito grande não somente para os agentes de pastoral, mas para toda a Igreja.
O nascimento dos APNs coincide com a descoberta da negritude na Igreja
            Não há dúvida que, com o término do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica tornou-se um canal expressivo para as reivindicações dos movimentos sociais[1], em particular para o que vem do povo negro. Cresce nas lideranças a consciência da necessidade de se refletir sobre a realidade de conflito racial no Brasil. Este é também um período que gera a Teologia da Libertação[2] no intuito de contribuir com uma reflexão teológico-prático-pastoral no interior da pastoral social das Igrejas, na aproximação das realidades do povo negro, periferia, favelas e organização de movimentos sociais e populares[3]. Estes, aos poucos vão descobrindo as causas sociais da situação de miséria e exclusão, às quais foram submetidos e passam a exercitar a solidariedade como alternativa para superar tal situação[4]. A presença do negro e da negra vivendo sua fé sempre marcou a história da Igreja. Em meio a colonização, escravidão e tanto sofrimento, não faltou o resgate das confrarias e irmandades, já cultivadas na África, e que aqui, em contato com as que vieram da Europa, foram responsáveis por salvaguardar a fé e valores do povo negro[5]. Os elementos fundamentais da fé cristã, juntamente com sua cosmovisão e práxis solidária, trouxeram para a comunidade negra uma rica reflexão e práxis. É na participação junto às Comunidades Eclesiais de Base – CEBs - que os afrodescendentes podem manifestar sua fé de forma concreta e comprometida[6]. “Na identificação dos problemas que afligem a vida dos empobrecidos, desponta a questão do racismo e da discriminação. A percepção de que a discriminação e o racismo agravavam ainda mais a situação no mundo dos pobres e marginalizados, colocava um desafio a mais para os negros na Igreja”[7].
            Foi também de fundamental importância, a realização da Terceira Conferência Geral dos Bispos latino-americanos e Caribenhos em Puebla, em 1979. Uma das grandes contribuições que o documento final trouxe foi a relação das feições sofredoras dos indígenas e afrodescendentes com as feições sofredoras de Cristo (Puebla, n. 34). No ano seguinte, o Conselho Episcopal Latino-americano - CELAM - realizou um "encontro na Colômbia, retomando a questão, propondo pontos concretos com relação à Comunidade Negra, reassumindo o compromisso de, como Igreja, dar uma maior abertura às iniciativas afro, o que suscitou, a partir de 1980, o surgimento dos Encontros de Pastoral Afro-Americana - EPA. Por ocasião do segundo EPA, em Esmeralda, no Equador, nasce no Brasil, os Agentes de Pastoral Negros - APNs. Porém, o seu surgimento está muito mais ligado ao Grupo de União e Consciência Negra – GRUCON, do qual participavam também não-cristãos. Surgiu um conflito interno quando houve a proposta da criação de uma pastoral do negro ou pastoral afro, ligada à Linha 2 da CNBB. Deste conflito, o grupo se dividiu, permanecendo como GRUCON somente a parte que quis continuar independente da Igreja. A outra, passou a usar, pela primeira vez, a terminologia Agentes de Pastoral Negros que, mesmo nascendo como uma pastoral do negro na Igreja, rompe os limites eclesiais, em sua práxis, sendo também um movimento negro, marcando sua ação e militância pela questão da fé[8]. Hoje, os APNs realizam uma caminhada independente, pois não se consideram mais “da Igreja”. A partir daí inúmeros outros grupos foram surgindo, acompanhados e articulados pelo Secretariado Nacional da Pastoral Afro, ligado a CNBB.
Ser agente da pastoral afro é ter engajamento profético nas diversas lutas da comunidade negra
            O contexto em que se dá a criação da Pastoral afro está marcado pelas “muitas iniciativas no trabalho com as comunidades negras, pela necessidade de ter uma coordenação que articulasse os vários serviços, funcionasse como ponto de referência e contribuísse para que os trabalhos efetivamente acontecessem. A Pastoral afro-brasileira tem acompanhado e participado da organização dos serviços que dizem respeito à comunidade negra. Assume como objetivos: a) animar os grupos negros católicos existentes; b) incentivar o surgimento de novos grupos que buscam sua identidade numa sociedade e Igreja plurais; c) promover a integração, e articulação dos grupos e das iniciativas, respeitando as suas particularidades; d) colaborar na construção de uma sociedade justa e solidária, como exercício da cidadania a serviço da vida e da esperança, e testemunhar a fé em profunda comunhão eclesial”[9]
Diferentemente de outros agentes de pastoral, os agentes da pastoral afro, segundo o Pe. Toninho, cultivam três posturas: a) tomada de consciência quanto a discriminação na sociedade; b) levar o debate sobre a questão do racismo para dentro das Igrejas, despertando-as para a tomada de consciência sobre o racismo internalizado, inclusive em suas práticas e procedimentos; c) alicerçar a luta contra o racismo e a discriminação a partir da experiência fundante de fé de cada integrante[10]. Pela mística da negritude, resgatam os valores afro, mantendo atitudes de fé e luta, no exercício da solidariedade com os excluídos da sociedade. Assim, muitas lutas da negritude têm encontrado no projeto de atuação destes agentes uma atenção toda especial. São elas: a luta pelos direitos étnicos e humanos; a luta pela igualdade de oportunidade; a luta contra toda forma de racismo; a luta pela valorização da cultura negra; a luta ao lado dos quilombolas pela terra, fonte vital e herança ancestral; a luta pelo direito à vida; a luta por um processo educacional, comprometido com a sua realidade; a luta por melhores salários; a luta por uma teologia enegrecida; a luta contra a pena de morte; a luta contra o extermínio de crianças; a luta contra os cinturões de pobreza que a cada dia aumentam mais; a luta pela cidadania; a luta da mulher, que é também a luta da mulher negra, pelo resgate de sua subjetividade e dignidade. E tantas outras lutas[11].

Conclusão
             Os elementos da negritude, uma vez reconstruídos e resgatados enegrecem a Igreja, pois oferecem aos negros e negras um jeito próprio de ser e contribuem para que a evangelização seja sempre mais dinâmica. O próprio documento de Aparecida reconheceu que os afrodescendentes se caracterizam “pela expressividade corporal, enraizamento familiar e sentido de Deus” (DAp 56). Assim, buscam oferecer o melhor de si para que a prática pastoral seja includente e comprometida. Muitos desses negros e negras vêm de práticas solidárias em favor das comunidades mais pobres e questionam a muitos que, dentro da Igreja, não contribuem para que ela seja de fato profética. A nossa missão eclesial traz como característica um discipulado reparador, promovendo a vida e dignidade dos afrodescendentes, denunciando as injustiças, discriminação e políticas de exclusão, às quais são submetidas comunidades negras.

Axé!



[1] "No período do Regime Militar no Brasil, poucas foram as instituições onde se tornou possível organizar as lutas de resistência e cidadania. Neste sentido, a Igreja, por ser uma instituição menos visada pelo sistema repressor, acabou se constituindo num espaço privilegiado para o fortalecimento dos movimentos sociais (...) Alguns autores, como Viola e Scott chegaram a afirmar que mesmo nos períodos mais repressivos, as CEBs foram virtualmente as únicas organizações populares no Brasil"( ROCHA, J. G., Op. cit., p. 68). Cf. também KÄRNER, H. Movimentos sociais: Revolução no Cotidiano. In WARREN, I. S.; KRISCHKE, P. J. (Org.) Uma Revolução no cotidiano? Os movimentos Sociais na América do Sul. Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 25.
[2] Ibid., p. 68.
[3] Cf. SILVA, Marcos Rodrigues da.  Emergência da consciência de ser negro/negra na pastoral, p. 7.
[4] Cf. ROCHA, José Geraldo da. Teologia e negritude, p. 69.
[5] Cf. SILVA, Marcos Rodrigues da. Op. cit., p. 7.
[6] A partir destas comunidades, que funcionavam como verdadeiras escolas de formação para a cidadania, muitos grupos se organizaram visando a transformação da sociedade e buscando readquirir seus direitos" (Ibid, p. 68).
[7] Ibid., p. 69.
[8] Cf. ROCHA, José Geraldo da, Op. cit., p. 69.
[9] 15º Plano Bienal de Atividades do Secretariado Nacional, doc. Da CNBB,  p.63 apud VI CONENC- Texto Base. Refletindo o rosto negro da Igreja: de Medellin à Aparecida. Brasília, 2009, p. 40-41.
[10] Cf. SILVA, A. A. da. in Id. Ibid., p. 73; Cf.  também SILVA, A. A. in ATABAQUE-ASETT. Op. cit., p. 14.
[11] SILVA FILHO, S. T. da. Vida Religiosa e negritude. In . In Negros e Indígenas: Novos rostos da Vida Religiosa. Revista Convergência, Rio de Janeiro, 1995, CRB, n. 284, p. 373.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A PROFECIA DE UM MUNDO MAIS HUMANO

        O tema central desta reflexão é a questão missionária como profecia de um mundo mais humano. Pela atividade nos fazemos próximos uns dos outros e vivemos uma vida com sentido. A missão dá sentido à vida e, como não se vive sem sentido, então não se vive sem missão. A missão é um caso de amor e quem ama é verdadeiramente missionário. A missão, para ser verdadeira, deve ser profética, ou seja, deve fazer a diferença. Isso fica bem evidente tanto com o profeta Amós quanto com os discípulos enviados por Jesus.
         Após a morte de Salomão o reino se divide em dois: Israel ao norte e Judá ao sul. O profeta Amós pertence ao reino do sul e é enviado por Deus para profetizar no norte. Amós é colono e cultiva um estilo de vida simples, de sorte a ter a missão profética, não por profissão, mas sim por vocação. O seu encontro com sacerdote Amasias não produz muito fruto, pois este pertencia à corte e dava respaldo ao sistema injusto do rei Jeroboão II. Este sacerdote sente-se incomodado com a presença do profeta Amós, o qual manifestava o desgosto do Senhor com tal situação. Amasias então expulsa o profeta, pois sua presença ameaçava a todo o sistema. Os profetas são mesmo assim: veem longe e se antecipa nas situações, provocando um repensar a vida, a conduta e as decisões. Os profetas são perseguidos porque não se contentam em ficar olhando as coisas acontecerem como meros expectadores, mas investem o melhor de si para que outra realidade possível possa acontecer.
         O profeta tem consciência de que sua vocação não é iniciativa própria, mas tem origem divina. Ele é consciente de sua realidade e da realidade do seu povo. Vive incomodando aqueles que mantêm estruturas injustas, explorando e oprimindo as pessoas. Ele vive uma vida com sentido, pois é constituído profeta para os outros. Não existe profeta para si mesmo. Como mensageiro da Palavra de Deus, o profeta não fala em nome próprio. Por isso suas palavras inquietam, provoca rupturas, levando à conversão e a decisão. A vida parece perder a sua dinamicidade, quando os profetas se calam.
         Jesus envia os discípulos com uma missão profética, pois deseja que a presença deles faça a diferença na vida de muitas pessoas, principalmente dos pobres, doentes e sofredores. Assim como foi a missão de Jesus, deve ser a dos seus discípulos, que, na verdade, apenas continuam a missão do mestre. Jesus podendo fazer tudo sozinho, não o faz; quis contar com colaboradores. Primeiro, os chama para estarem com eles e depois os envia em missão. O envio é feito dois a dois, pois o seu desejo é que a missão seja partilhada em comunidade, isto é, deve haver uma co-responsabilidade na missão. Um missionário não surge por conta própria, mas a partir de uma comunidade. Ele age em comunidade e caminha em sintonia com ela. Em comunidade pode se ajudar e se fortalecer. Os discípulos missionários de Jesus partem com a autoridade de Jesus sobre as forças do mal, que oprimem e paralisam as pessoas; aceitam a proposta de desprendimento com relação aos bens materiais e o despojamento de si. A sua única riqueza é a missão. Quando não forem escutados, não devem forçar ninguém a aceita-los; devem partir para outro lugar como mensageiros de paz.
         Os discípulos e discípulas atuais somos chamados a crescer na consciência de que não seguimos uma ideia ou uma doutrina, mas uma pessoa – Jesus Cristo - que exerceu um grande fascínio sobre nossas vidas. Alimentamos esta certeza, quando somos capazes de cultivar um encontro verdadeiro pessoal com ele. Esta experiência plena de sentido não pode ficar fechada em nós; deve ser comunicada e com muito entusiasmo para que mais pessoas se tornem discípulas, empenhando o melhor de suas vidas pela mesma causa pela qual Jesus deu sua vida. A missão evangelizadora é uma caminhada solidária com a realidade das pessoas. É profecia de um mundo onde os pobres, os doentes e sofredores são olhados com prioridade. Se em nossa missão não priorizarmos este tipo de pessoas, jamais corresponderemos à vontade daquele que nos chamou. Se não nos colocarmos ao lado dos que mais precisam, cultivando um estilo de vida simples junto a estes e agindo afetiva e efetivamente em suas vidas, a mensagem que levamos vai perdendo pouco a pouco a sua força profética.


Axé!

Pe. Degaaxé

segunda-feira, 9 de julho de 2012

3 A LINGUAGEM DOS SÍMBOLOS

        Os símbolos têm uma sintonia bastante aguçada com os temas anteriores, pois, sendo um fenômeno humano[1], fazem parte da riqueza do interior do ser humano, que é comunicada como expressão e produção cultural.  O símbolo não vale pelo que é em si, mas pelo que ele significa. Assim sendo, um abraço, um gesto, um movimento, ou uma ação traz um significado que os ultrapassa enquanto situações visíveis. Quando nos referimos aos símbolos religiosos, essa verdade parece ainda mais notável. Sobre isso, o autor U. Zilles, citando Paul Tillich, afirma que o sentido dos símbolos religiosos “consiste em ser a linguagem da religião, a única linguagem através da qual a religião se pode expressar de maneira imediata”[2]. Porém, os símbolos variam muito de uma cultura a outra. Símbolo que numa cultura é cheio de significado, para outra, não tem significado algum[3].
         Segundo o autor L. C. Susin, “os símbolos possuem uma nota comum, mas ganham direções polivalentes. Para saber a força do símbolo e a sua direção, é necessário saber que experiência se tem deste símbolo dentro da cultura em que está”[4]. Os símbolos, ao mesmo tempo em que expressam uma identidade, uma grande paixão, podem levar a sérios conflitos. É só tomarmos como exemplo a bandeira de certo povo; quando ela é queimada por outro, acirram-se os ânimos, por agredir o patriotismo, provocando violência. Uma imagem sacra, quando é ultrajada, chutada por alguém, agridem-se os sentimentos religiosos dos fiéis devotos.
        Para nos relacionarmos com Deus necessitamos de sinais e símbolos. Os símbolos nos permitem enxergar além e o oculto[5]. Por isso se diz que o símbolo tem algo de misterioso e encantador. Se tomarmos a Sagrada Escritura, vemos a criação como um símbolo todo particular da bondade, generosidade e grandeza do seu Criador. Já em Jesus, temos o símbolo por excelência, por nos revelar plenamente o Pai[6]. Tornando-se nosso referencial, vemos tudo a partir dele. É neste sentido que se compreende a existência e finalidade da Igreja, como bem expressa o autor Urbano Zilles: “O símbolo de Cristo prolonga-se, até certo ponto, através da Igreja, portadora de suas palavras e de seus sinais. A Igreja é um caminho para chegar a Cristo, o Filho de Deus. Ela expressa seu mistério através de uma linguagem simbólica, nas celebrações, por um conjunto de sinais. Toda a vida eclesial é simbólica. Os fiéis alimentam a sua fé e se unem a Cristo através de símbolos”[7] 
        A Igreja não existe para ela mesma. É aí, portanto que reside o seu mistério, pois, como continuadora da obra de Cristo, é enviada a todos os povos e culturas, como símbolo de Cristo e tem a finalidade de prolongar e atualizar sua obra, principalmente, de forma teológico-simbólica, isto é, atualiza a salvação de Cristo através da liturgia. Esta riqueza, que é a liturgia cristã, tornou-se acessível graças ao testemunho de tantas pessoas que, como Cristo, fizeram de suas vidas, símbolo do amor e da misericórdia de Deus.

Axé!
Pe. Degaaxé



[1] Cf. ZILLES, Urbano. Significação dos símbolos cristãos. p. 11. O autor L. C. Susin vai  dizer que “o símbolo é a linguagem própria do ser humano porque é aberto a ‘algo mais’, transcende a si mesmo”. (SUSIN, Luiz Carlos. Op. cit., p. 83).
[2] TILLICH, Paul. Apud ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 11.
[3] “(...) Os símbolos têm valor fixo, para todos os seres humanos, e ao mesmo tempo tomam direção de acordo com a cultura, a consciência, a religião. Por exemplo, o sol: pode ser ‘senhor’ e ‘Deus’, ou pode ser senhor e irmão. Que seja senhor é valor fixo. Que seja Deus para alguns e irmão para outros é direcionado” (SUSIN, Luiz Carlos. Op. cit., p. 91).
[4] Ibid., p. 18.
[5] “Símbolo é mais do que um mero sinal convencional que aponta para outra coisa, como seria a seta indicadora na estrada. O símbolo é a condensação de uma realidade da qual ele participa. Aponta para dentro de si mesmo. Ver o símbolo é ver a realidade que não se esgota na visão. Saborear o símbolo é saborear a realidade que não se esgota nesse sabor” (Ibid, p. 83).
[6] Cf. ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 14.
[7] Ibid., p. 14.

domingo, 8 de julho de 2012

2 A LINGUAGEM COMO INSTRUMENTO GERADOR DE CULTURA

          A linguagem, enquanto instrumento essencial para a comunicação, é um importante meio que veicula a cultura de cada povo[1].  O documento de Santo Domingo considera “a comunicação entre as pessoas um admirável elemento gerador de cultura” (SD 23). Enquanto ser cultural, o ser humano serve-se da linguagem para manifestar seu jeito de ser e de pensar.  Ela envolve todo o ser humano e, ao mesmo tempo, espelha a visão de mundo de um determinado povo. Segundo o teólogo U. Zilles, “a linguagem está ligada à experiência. A experiência acontece num lugar e num tempo, envolve pessoas, gestos, atitudes e objetos.  Como eu vou explicar sobre o sabor da laranja para alguém que nunca teve o gosto da laranja?”[2]. Dizemos, portanto, que o ser humano é um ser de linguagem pelas circunstâncias de que: fala, comunica e exterioriza o que pensa e o que experimenta. O autor J. M. Imbamba, citando J. B. Mondin, assim se expressa: “A linguagem denota a função, a capacidade de que o ser humano é naturalmente dotado (...) de exprimir-se e comunicar com os semelhantes mediante a palavra. Trata-se de uma capacidade inata que convém, do mesmo modo, a todos os seres humanos, independentemente da nação e da cultura a que pertencem”[3].
         A linguagem, sendo fruto de uma época e de experiências, é algo convencionado de acordo com a caminhada e a maturidade dos grupos humanos. Valorizamos nossas experiências quando buscamos transformá-las em alguma linguagem. Esta é uma situação fundamental para que estas experiências não se percam no tempo. Trata-se de uma forma de resgatar a memória para não perder a identidade. Sobre isso afirma também o autor L. C. Susin: “A linguagem é a corporeidade específica do ser humano. É a nossa casa. ‘a linguagem é o lar do ser humano’ (Heidegger), lar que o alimenta e o torna fecundo (...) Se nossas experiências mais íntimas não se transformam em alguma linguagem, estão fadadas a se perder e a desaparecer. O que não se exterioriza não existe. Pela linguagem nós nos comunicamos, comungamos, amamos”[4].
         O ser humano é feito na linguagem e faz a linguagem. Quando se diz, por exemplo: “não só de pão vive o ser humano, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4), temos a palavra como um instrumento concreto de linguagem que tem muito a ver com íntimo: traduz o que se passa dentro do ser humano e se expressa nas diversas realidades nas quais o ser humano está envolvido, sendo referência para que Deus, encarnando-se em nosso meio, comunique sua vida, convidando-nos à sua intimidade[5].
        A linguagem do amor realizada por Deus foi assumindo nossa condição e enchendo-a de sentido. Assim ele se revela na história e na cultura humanas. Mesmo através de nossos gestos limitados e das nossas palavras humanas, se pode perceber a força e a grandeza divina. Neste sentido, os místicos são ainda mais sensíveis. Eles fazem uso de uma linguagem ‘repleta, ‘saturada’ de experiências imediatas, através de símbolos, predicativos, narrativas poéticas, desenhos (‘mandalas’)[6].

Axé!

Degaaxé



[1] Cf. IMBAMBA, José Manuel. Uma nova cultura para mulheres e homens novos, p. 138.
[2] Frase do professor e teólogo U. Zilles durante as aulas de Teologia e Linguagem no Mestrado em Teologia Sistemática da Faculdade de Teologia da PUCRS, em 2011.
[3] MONDIN, João Battista. Apud IMBAMBA, José Manuel. Op. cit., p. 40.
[4] SUSIN, Luiz Carlos. Os salmos na vida cristã. p. 14s.
[5] Cf. Ibid., p. 15.
[6] Cf. Ibid., p. 12.

terça-feira, 3 de julho de 2012

1 A CULTURA COMO IDENTIDADE E CRIAÇÃO DO SER HUMANO

        A cultura é reveladora da identidade do ser humano. Trata-se de uma característica que lhe é realmente fundamental. É inconcebível o ser humano fora da cultura, pois esta é um modo específico de ser do homem e da mulher. A culturalidade está entranhada em seu ser. São características fortes da cultura: “a comunhão, a unidade, a diversidade, a intersubjetividade e o caráter social da existência humana”[1]. De uma forma mais concreta, ela pode ser definida como “a maneira de pensar, a mentalidade de um grupo humano, e que explica as maneiras de proceder (modo de vida) desse grupo”[2]. É aí que se compreende a riqueza da diversidade cultural e o quanto se ganha quando essa diversidade é valorizada e promovida.
        Além da identidade e mentalidade, a cultura tem muito a ver com tarefa, missão, responsabilidade, perpetuidade. O ser humano, quando cria, revela o transbordamento do seu interior criativo, mas visa também uma contribuição, enquanto legado, para as futuras gerações[3]. Compreendemos esta riqueza interior criativa e inesgotável em relação ao próprio Criador, que dotou o ser humano com as faculdades necessárias para tal fim.
        Neste sentido, ele é cultura e faz cultura. Segundo o autor angolano, J. M. Imbamba, a cultura não é obra de Deus nem da natureza e muito menos do acaso; ela é obra do ser humano; é fruto do seu gênio, da sua fantasia e criatividade, da sua inteligência e vontade; é tudo aquilo que o ser humano cria, graças às faculdades privilegiadas que possui[4]. Isto de modo algum deve nos levar a “pensar que as obras do engenho e poder humano se opõem ao poder de Deus, ou de considerar a criatura racional como rival do Criador” (GS 34). No entanto, ao afirmarmos que o ser humano é criador da cultura, não pretendemos dizer que a cria do nada (atividade exclusiva de Deus, por isso é o Ser Supremo), pois, neste caso, o ser humano não passa duma ‘causa instrumental livre’ com o mandato divino de dominar e administrar as coisas deste mundo. Eis porque é que a cultura é a resposta do ser humano ao querer (providencial) divino; eis porque é que, além de humanizar, o ser humano, através da cultura, deva também glorificar o seu criador”.[5]
          É, portanto, vontade divina que o ser humano seja criativo culturalmente e é assim que ele se define em meio aos demais seres criados. Mas, segundo J. M. Imbamba, o processo não é automático, pois, para que o ser humano possa produzir cultura, requer que haja uma aprendizagem, uma educação, enfim, um empenho constante. E ainda assim será passível de contradições por causa das limitações próprias do ser homem e mulher[6]. Isso não impede a caminhada insistente e perseverante em vista do prolongamento e aperfeiçoamento da obra do seu Criador[7]. Assim, o ser humano é capaz de criar, porque uma força maior o impulsiona para isso. Ele vai, então, tomando consciência de que há uma força onipotente que o torna criativo e, ao mesmo tempo, o supera[8].  Esta força é o próprio Deus, fazendo-se presente na ação humana, tornando a cultura um ‘lugar teológico’, ou seja, Deus se manifesta na e pela cultura.

Axé!
Pe. Degaaxé


[1] IMBAMBA, José Manuel. Uma nova cultura para mulheres e homens novos, p. 27s.
[2] LANGA, Adriano. A oração cristã e exigências da inculturação, p. 78.  Outra definição bem sintética, nesta mesma direção, temos com R. J. Schreiter: “Composição de elementos ideacionais (visão de mundo, valores, regras de comportamento), elementos operacionais (rituais e papéis) e elementos materiais (língua, símbolos, comida, roupas, residências e outros artefatos). (SCHREITER, Robert J. A nova catolicidade, p. 89).
[3]  (...) quanto mais aumenta o poder dos seres humanos, tanto mais cresce a sua responsabilidade, pessoal e comunitária” (GS 34).
[4] Cf. IMBAMBA, José Manuel. Op. cit., p. 32.
[5] Ibid., p. 33. Em sintonia com esta ideia, citamos um trecho da constituição pastoral Gaudium et Spes, que diz: “A atividade humana individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os seres humanos, no decurso dos séculos, tentam melhorar as condições de vida, considerado em si mesmo, corresponde à vontade de Deus. Pois o ser humano, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade e, reconhecendo Deus como Criador universal, orientar-se a si e ao universo para ele; de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao ser humano, seja glorificado em toda a terra o nome de Deus” (GS 34).
[6] Cf. IMBAMBA, José Manuel. Op. cit., p. 33. 
[7] Os seres humanos “prestam conveniente serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história” (GS 34).
[8] Cf. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 55.

domingo, 1 de julho de 2012

LITURGIA CRISTÃ E POVO NEGRO: A INCULTURAÇÃO COMO EXIGÊNCIA LITÚRGICA

         Jesus de Nazaré, Símbolo por excelência, do amor e da misericórdia de Deus, encarnando-se em nossa realidade, utiliza nossa linguagem para comunicar os desígnios divinos a nosso respeito, envolvendo-nos em sua relação com o Pai e o Espírito. Este processo revela e realiza o verdadeiro sentido de toda liturgia: proporcionar comunhão com a Trindade. Ao enviar a Igreja a todas as culturas, Jesus Cristo a estabelece como continuadora fiel de sua Obra em favor da salvação da humanidade, a fim de que ninguém fique de fora daquilo que foi preparado para todos e todas. A Igreja, no entanto, ao aproximar-se das culturas, tem a consciência de que sua missão passa pelo diálogo, serviço e anúncio, testemunhando a comunhão que o próprio Deus quis estabelecer com o seu Povo. Ela leva consigo um grande tesouro, mas em vasos de barro, pois determinados códigos culturais, assimilados e transportados de um lugar para outro, no início do processo evangelizador, ofuscaram – por um bom tempo - o brilho de tão precioso tesouro. Por isso, é chamada a evangelizar, reconhecendo, no seio das culturas, a existência das ‘sementes do Verbo’. Assim, a liturgia, como ação do próprio Jesus Cristo em favor da humanidade, não deve parecer estranha a nenhuma cultura. Urge, portanto, uma liturgia que contemple os símbolos que são mais caros para as culturas e que traduzem seus anseios, suas buscas, enfim, sua verdadeira identidade.
         Está em foco aqui o verdadeiro sentido da Páscoa de Jesus Cristo que, através da entrega do seu corpo e sangue, libertou a humanidade de tudo aquilo que a escravizava. Jesus é aquele que morreu, mas ressuscitou, identificando-se com todos os crucificados da nossa história, não para deixá-los do mesmo jeito, mas para trazer-lhes um novo sentido para a vida. O povo negro se identificou muito com este processo e começou a celebrar a sua história sofrida, mas cheia de esperança, no Mistério da Páscoa de Cristo, encontrando aí um novo sentido de viver. Mas a sua identificação com a liturgia cristã nunca foi plena, pois percebia que a forma como esta era realizada não levava em conta os valores de suas culturas. O que acontecia, na verdade é que o Povo negro assumiu a liturgia cristã, mas esta não o ‘assumiu’ - referindo-me aos aspectos particulares de suas culturas. Era preciso que houvesse, então, a possibilidade de celebrar a liturgia de forma diversificada: que preservava o essencial do rito romano, mas que acolhia também alguns símbolos da cultura negra.
          A fundamentação para esta postura encontra respaldo em diversos documentos do magistério da Igreja, particularmente, na constituição conciliar Sacrossanctum Concilium. Nos números 37 a 40, o referido documento expressa possibilidades de adaptação da liturgia à mentalidade dos diferentes povos e culturas. Os demais documentos desenvolvem, a partir daí, orientações pastorais que auxiliam na aplicação adequada das determinações do Concílio. Tais documentos destacam a necessidade de uma maior abertura para acolher os valores dos povos e culturas que estejam de acordo com o espírito litúrgico. Neste sentido, algumas experiências começaram a ser realizadas e, a partir de 1981, surgem celebrações litúrgicas em meios afro-brasileiros, que levam em conta esta realidade. São celebrações que trazem um estilo de canto com ritmos diversificados e envolventes, possibilitando a presença de atabaques, danças e outros símbolos da cultura negra, num clima de intensa alegria e fraternidade; o ambiente é preparado com muita criatividade e harmonia, valorizando a partilha de alimentos e as vestes de origem africana. É assim que o afrodescendente manifesta a sua fé: na alegria. O povo negro canta rezando e reza dançando, num processo celebrativo que envolvendo o corpo por inteiro.
         Ao celebrar com um novo rosto, isto é, resgatando os valores de suas culturas, os afrodescendentes tomam consciência da riqueza do Reino de Deus, expressa na diversidade das culturas, buscando manter a fidelidade aos ritos sagrados. Neste sentido, também nos servem de apoio documentos mais recentes do magistério latino-americano e caribenho, especificamente, Santo Domingo e Aparecida, como também documentos da CNBB, que salientam os esforços realizados para inculturar a liturgia em meio a estas culturas. A partir desta visão, surgem alguns questionamentos: Como a liturgia pode contribuir para que a mensagem do evangelho seja mais acessível aos diversos povos e culturas? Quais as exigências para que haja uma verdadeira inculturação? O que tem sido feito para que a linguagem litúrgica não seja estranha às culturas afro-brasileiras? Quais têm sido os passos e os esforços para aconteça uma verdadeira inculturação em meios afro-brasileiros? Que símbolos da cultura negra podem ser incorporados à liturgia, sem ferir o espírito litúrgico? As respostas a estes questionamentos é a tarefa que assumo para os próximos artigos. Não temos a pretensão de esgotar o assunto, pois a inculturação, sendo exigência da própria liturgia, é um processo complexo, assim como é a realidade das culturas, apresentando sempre novos desafios, conforme o tempo e as mentalidades.
Axé!
Pe. Degaaxé