Jesus de Nazaré, Símbolo por
excelência, do amor e da misericórdia de Deus, encarnando-se em nossa
realidade, utiliza nossa linguagem para comunicar os desígnios divinos a nosso
respeito, envolvendo-nos em sua relação com o Pai e o Espírito. Este processo
revela e realiza o verdadeiro sentido de toda liturgia: proporcionar comunhão
com a Trindade. Ao enviar a Igreja a todas as culturas, Jesus Cristo a
estabelece como continuadora fiel de sua Obra em favor da salvação da humanidade,
a fim de que ninguém fique de fora daquilo que foi preparado para todos e
todas. A Igreja, no entanto, ao aproximar-se das culturas, tem a consciência de
que sua missão passa pelo diálogo, serviço e anúncio, testemunhando a comunhão
que o próprio Deus quis estabelecer com o seu Povo. Ela leva consigo um grande
tesouro, mas em vasos de barro, pois determinados códigos culturais, assimilados
e transportados de um lugar para outro, no início do processo evangelizador,
ofuscaram – por um bom tempo - o brilho de tão precioso tesouro. Por isso, é
chamada a evangelizar, reconhecendo, no seio das culturas, a existência das ‘sementes
do Verbo’. Assim, a liturgia, como ação do próprio Jesus Cristo em favor da
humanidade, não deve parecer estranha a nenhuma cultura. Urge, portanto, uma
liturgia que contemple os símbolos que são mais caros para as culturas e que
traduzem seus anseios, suas buscas, enfim, sua verdadeira identidade.
Está em foco aqui o verdadeiro
sentido da Páscoa de Jesus Cristo que, através da entrega do seu corpo e
sangue, libertou a humanidade de tudo aquilo que a escravizava. Jesus é aquele
que morreu, mas ressuscitou, identificando-se com todos os crucificados da
nossa história, não para deixá-los do mesmo jeito, mas para trazer-lhes um novo
sentido para a vida. O povo negro se identificou muito com este processo e
começou a celebrar a sua história sofrida, mas cheia de esperança, no Mistério
da Páscoa de Cristo, encontrando aí um novo sentido de viver. Mas a sua identificação
com a liturgia cristã nunca foi plena, pois percebia que a forma como esta era realizada
não levava em conta os valores de suas culturas. O que acontecia, na verdade é
que o Povo negro assumiu a liturgia cristã, mas esta não o ‘assumiu’ -
referindo-me aos aspectos particulares de suas culturas. Era preciso que
houvesse, então, a possibilidade de celebrar a liturgia de forma diversificada:
que preservava o essencial do rito romano, mas que acolhia também alguns
símbolos da cultura negra.
A fundamentação para esta postura
encontra respaldo em diversos documentos do magistério da Igreja,
particularmente, na constituição conciliar Sacrossanctum
Concilium. Nos números 37 a 40, o referido documento expressa
possibilidades de adaptação da liturgia à mentalidade dos diferentes povos e
culturas. Os demais documentos desenvolvem, a partir daí, orientações pastorais
que auxiliam na aplicação adequada das determinações do Concílio. Tais
documentos destacam a necessidade de uma maior abertura para acolher os valores
dos povos e culturas que estejam de acordo com o espírito litúrgico. Neste sentido,
algumas experiências começaram a ser realizadas e, a partir de 1981, surgem
celebrações litúrgicas em meios afro-brasileiros, que levam em conta esta
realidade. São celebrações que trazem um estilo de canto com ritmos
diversificados e envolventes, possibilitando a presença de atabaques, danças e outros
símbolos da cultura negra, num clima de intensa alegria e fraternidade; o
ambiente é preparado com muita criatividade e harmonia, valorizando a partilha
de alimentos e as vestes de origem africana. É assim que o afrodescendente
manifesta a sua fé: na alegria. O povo negro canta rezando e reza dançando, num
processo celebrativo que envolvendo o corpo por inteiro.
Ao celebrar com um novo rosto, isto
é, resgatando os valores de suas culturas, os afrodescendentes tomam
consciência da riqueza do Reino de Deus, expressa na diversidade das culturas,
buscando manter a fidelidade aos ritos sagrados. Neste sentido, também nos
servem de apoio documentos mais recentes do magistério latino-americano e
caribenho, especificamente, Santo Domingo e Aparecida, como também documentos
da CNBB, que salientam os esforços realizados para inculturar a liturgia em
meio a estas culturas. A partir desta visão, surgem alguns questionamentos:
Como a liturgia pode contribuir para que a mensagem do evangelho seja mais
acessível aos diversos povos e culturas? Quais as exigências para que haja uma
verdadeira inculturação? O que tem sido feito para que a linguagem litúrgica
não seja estranha às culturas afro-brasileiras? Quais têm sido os passos e os
esforços para aconteça uma verdadeira inculturação
em meios afro-brasileiros? Que símbolos da cultura negra podem ser incorporados
à liturgia, sem ferir o espírito litúrgico? As respostas a estes
questionamentos é a tarefa que assumo para os próximos artigos. Não temos a
pretensão de esgotar o assunto, pois a inculturação,
sendo exigência da própria liturgia, é um processo complexo, assim como é a
realidade das culturas, apresentando sempre novos desafios, conforme o tempo e
as mentalidades.
Axé!
Pe. Degaaxé
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