domingo, 1 de julho de 2012

LITURGIA CRISTÃ E POVO NEGRO: A INCULTURAÇÃO COMO EXIGÊNCIA LITÚRGICA

         Jesus de Nazaré, Símbolo por excelência, do amor e da misericórdia de Deus, encarnando-se em nossa realidade, utiliza nossa linguagem para comunicar os desígnios divinos a nosso respeito, envolvendo-nos em sua relação com o Pai e o Espírito. Este processo revela e realiza o verdadeiro sentido de toda liturgia: proporcionar comunhão com a Trindade. Ao enviar a Igreja a todas as culturas, Jesus Cristo a estabelece como continuadora fiel de sua Obra em favor da salvação da humanidade, a fim de que ninguém fique de fora daquilo que foi preparado para todos e todas. A Igreja, no entanto, ao aproximar-se das culturas, tem a consciência de que sua missão passa pelo diálogo, serviço e anúncio, testemunhando a comunhão que o próprio Deus quis estabelecer com o seu Povo. Ela leva consigo um grande tesouro, mas em vasos de barro, pois determinados códigos culturais, assimilados e transportados de um lugar para outro, no início do processo evangelizador, ofuscaram – por um bom tempo - o brilho de tão precioso tesouro. Por isso, é chamada a evangelizar, reconhecendo, no seio das culturas, a existência das ‘sementes do Verbo’. Assim, a liturgia, como ação do próprio Jesus Cristo em favor da humanidade, não deve parecer estranha a nenhuma cultura. Urge, portanto, uma liturgia que contemple os símbolos que são mais caros para as culturas e que traduzem seus anseios, suas buscas, enfim, sua verdadeira identidade.
         Está em foco aqui o verdadeiro sentido da Páscoa de Jesus Cristo que, através da entrega do seu corpo e sangue, libertou a humanidade de tudo aquilo que a escravizava. Jesus é aquele que morreu, mas ressuscitou, identificando-se com todos os crucificados da nossa história, não para deixá-los do mesmo jeito, mas para trazer-lhes um novo sentido para a vida. O povo negro se identificou muito com este processo e começou a celebrar a sua história sofrida, mas cheia de esperança, no Mistério da Páscoa de Cristo, encontrando aí um novo sentido de viver. Mas a sua identificação com a liturgia cristã nunca foi plena, pois percebia que a forma como esta era realizada não levava em conta os valores de suas culturas. O que acontecia, na verdade é que o Povo negro assumiu a liturgia cristã, mas esta não o ‘assumiu’ - referindo-me aos aspectos particulares de suas culturas. Era preciso que houvesse, então, a possibilidade de celebrar a liturgia de forma diversificada: que preservava o essencial do rito romano, mas que acolhia também alguns símbolos da cultura negra.
          A fundamentação para esta postura encontra respaldo em diversos documentos do magistério da Igreja, particularmente, na constituição conciliar Sacrossanctum Concilium. Nos números 37 a 40, o referido documento expressa possibilidades de adaptação da liturgia à mentalidade dos diferentes povos e culturas. Os demais documentos desenvolvem, a partir daí, orientações pastorais que auxiliam na aplicação adequada das determinações do Concílio. Tais documentos destacam a necessidade de uma maior abertura para acolher os valores dos povos e culturas que estejam de acordo com o espírito litúrgico. Neste sentido, algumas experiências começaram a ser realizadas e, a partir de 1981, surgem celebrações litúrgicas em meios afro-brasileiros, que levam em conta esta realidade. São celebrações que trazem um estilo de canto com ritmos diversificados e envolventes, possibilitando a presença de atabaques, danças e outros símbolos da cultura negra, num clima de intensa alegria e fraternidade; o ambiente é preparado com muita criatividade e harmonia, valorizando a partilha de alimentos e as vestes de origem africana. É assim que o afrodescendente manifesta a sua fé: na alegria. O povo negro canta rezando e reza dançando, num processo celebrativo que envolvendo o corpo por inteiro.
         Ao celebrar com um novo rosto, isto é, resgatando os valores de suas culturas, os afrodescendentes tomam consciência da riqueza do Reino de Deus, expressa na diversidade das culturas, buscando manter a fidelidade aos ritos sagrados. Neste sentido, também nos servem de apoio documentos mais recentes do magistério latino-americano e caribenho, especificamente, Santo Domingo e Aparecida, como também documentos da CNBB, que salientam os esforços realizados para inculturar a liturgia em meio a estas culturas. A partir desta visão, surgem alguns questionamentos: Como a liturgia pode contribuir para que a mensagem do evangelho seja mais acessível aos diversos povos e culturas? Quais as exigências para que haja uma verdadeira inculturação? O que tem sido feito para que a linguagem litúrgica não seja estranha às culturas afro-brasileiras? Quais têm sido os passos e os esforços para aconteça uma verdadeira inculturação em meios afro-brasileiros? Que símbolos da cultura negra podem ser incorporados à liturgia, sem ferir o espírito litúrgico? As respostas a estes questionamentos é a tarefa que assumo para os próximos artigos. Não temos a pretensão de esgotar o assunto, pois a inculturação, sendo exigência da própria liturgia, é um processo complexo, assim como é a realidade das culturas, apresentando sempre novos desafios, conforme o tempo e as mentalidades.
Axé!
Pe. Degaaxé

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