sábado, 26 de maio de 2012

A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM – “LÍNUGUAS” - NA COMUNICAÇÃO (DA FÉ)

Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus ultimamente, nestes nossos dias, por meio de seu Filho (Hb 1,1-2)

            O nosso Deus é especialista em comunicação e quando fala, facilmente, cria (Gn 1-2) chama e elege (Gn 12), liberta e salva (Ex 3), enfim, Sua Palavra, uma vez proferida, não volta para ele vazia (Cf Isaías 55). Ele é o Deus da Palavra. Ele utiliza muitas linguagens para comunicar-se com os seres humanos e revelar o seu imenso amor de ‘Pai/Mãe’. Aquela insuperável e de fácil compreensão, aconteceu quando Jesus assumiu nossa humanidade, com todos os seus limites, e não se sentiu diminuído ou envergonhado por isso. Pelo contrário, a levou consigo, quando subiu ao céu. Jesus ‘desce’ apenas com a divindade e sobe com a divindade e a humanidade. A nossa humanidade adquire, assim, o mais alto grau de dignidade. Esta situação até nos deveria ser ‘familiar’, pois a nossa fé nos diz que saímos de Deus e pertencemos a ele, por Jesus, o Deus humano. “Tão humano assim, só podia ser Deus”, diriam os antigos Padres da Igreja. Isso faz do ser humano um “lugar teológico”: nele Deus se manifesta. Portanto, o desrespeito ao ser humano atinge, de alguma forma, o próprio Deus que nele se faz presente. É por aí que queremos caminhar em nossa reflexão sobre a linguagem que está por trás do ‘desaparecimento’ de Jesus e a comunicação do Espírito Santo aos seus seguidores seguidoras.
           Antes de tudo, como dizer que Alguém vai embora, mas não se afasta? Numa linguagem afro, se a vida de alguém valeu a pena, ele ou ela nunca se afasta, pelo contrário, estará sempre presente: pelo sangue que corre nas veias dos seus descendentes, pelos ensinamentos – sabedoria - transmitidos durante sua existência física e por ser integrante da comunidade. Quem vive integrado à comunidade, jamais se ausentará e jamais será esquecido (a). Todos o (a) sentem. É isso que acontece com Jesus: ele ‘desaparece’ da vista, mas não se afasta da vida. Ele continua presente de diferentes formas e nos educa a captarmos a linguagem de sua presença: na Eucaristia, na Palavra - rezada, proclamada e vivida -, nos gestos libertadores dos seus seguidores e seguidoras e na ação do seu Espírito no mundo, renovando toda a criação e a história dos seres humanos. Este Espírito nos faz experimentar uma linguagem diferente daquilo que foi experimentado em Babel. Lá era só confusão; ninguém se entendia. O Espírito forja no coração das pessoas, de todas as culturas, uma linguagem de fácil compreensão e que favorece a comunhão. De muitas línguas, uma só linguagem: a linguagem do amor. Exporei agora algo sobre a teologia da linguagem para compreendermos melhor o efeito da comunicação proporcionada pelo Espírito.
Enquanto ser cultural, o ser humano serve-se da linguagem para manifestar seu jeito de ser e pensar.  Ela envolve todo o ser humano e, ao mesmo tempo, espelha a visão de mundo de determinada cultura. Segundo o teólogo U. Zilles, “a linguagem está ligada à experiência. A experiência acontece num lugar e num tempo, envolve pessoas, gestos, atitudes e objetos.  Como eu vou explicar sobre o sabor da laranja para alguém que nunca teve o gosto da laranja?”[1]. Dizemos, portanto, que o ser humano é um ser de linguagem por ser um ser que fala, que comunica e exterioriza o que pensa e o que experimenta. O autor angolano M. Imbamba, citando Mondin, assim se expressa: “A linguagem denota a função, a capacidade de que o ser humano é naturalmente dotado (...) de exprimir-se e comunicar com os semelhantes mediante a palavra. Trata-se de uma capacidade inata que convém, do mesmo modo, a todos os seres humanos, independentemente da nação e da cultura a que pertencem”[2]. Assim, nossas experiências são valorizadas quando buscamos transformá-las em alguma linguagem. Esta é uma situação fundamental para que estas experiências não se percam no tempo. Trata-se de uma forma de resgatar a memória para não perder a identidade. Sobre isso afirma também o autor L. C. Susin: “Se nossas experiências mais íntimas não se transformam em alguma linguagem, estão fadadas a se perder e a desaparecer. O que não se exterioriza não existe. Pela linguagem nós nos comunicamos, comungamos, amamos”[3].
           O ser humano é feito na linguagem e faz a linguagem. Por ela expressa seus anseios mais profundos, mas também suas experiências mais significativas. O próprio Deus serviu-se dela para manifestar seu mistério mais profundo: o amor. Quando o Espírito é enviado como dom, traz a plenitude de dons ao coração humano aberto ao mistério divino. Convida, assim, todas as pessoas à comunhão e à fraternidade. A linguagem humana e o amor de Deus se fundem para que surja, de todas as culturas, um só povo: um povo totalmente renovado, que proclame, de modo diversificado, as maravilhas do Senhor. Mesmo, através da frágil condição de nossos gestos e das nossas palavras, pode-se contemplar e experimentar tão precioso dom: a força e a grandeza divina, que derruba as barreiras que dividem os povos.
           Para que esta experiência não se torne pura teoria, é importante continuar a missão do Filho de Deus, acolhendo sempre a inspiração do seu Espírito. O caráter universal da missão de Cristo deve nos levar a utilizar uma linguagem que todos entendam, de forma a contagiar não somente a vida das pessoas, mas impregnar todos os ambientes. A situação nova que a criação deve experimentar é reflexo do quanto os seguidores e seguidoras de Jesus, animados pelo seu Espírito, se deixaram transformar, assimilando o seu jeito de ser e de viver. A missão é de Cristo, mas também é nossa por participação. Sigamos, portanto, na força do seu Espírito e digamos: Vinde, Espírito Santo, Linguagem de Deus, e renova a face da terra!

Axé!
Pe. Degaaxé







[1] Durante as aulas de Teologia e Linguagem no Mestrado em Teologia Sistemática da Faculdade de Teologia da PUCRS, em 2011.
[2] MONDIN, J. B. apud IMBAMBA, José Manuel. Uma nova cultura para mulheres e homens novos, p. 40.
[3] SUSIN, L. C. Os salmos na vida cristã. p. 14s.

domingo, 13 de maio de 2012

QUEM AMA NÃO FAZ DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS

De fato, estou compreendendo que Deus não faz
distinção entre as pessoas (Atos 10, 34).

 Deus é amor. Se quisermos falar aqui de definição, esta é a que melhor corresponde à essência divina. Todos e todas são chamados a amar porque Deus, que é amor em pessoa, se deu a conhecer e ensinou como vivenciá-lo. Parafraseando uma música popular, afirmo que é preciso amar as pessoas como se tudo terminasse hoje, como se esse fosse o meu, o seu último ato. Quem não ama não chegou a conhecer a Deus... E nós pensávamos que conhecíamos a Deus, mas nos equivocamos, pois Deus é amor e nós não conseguimos amar de verdade. O amor em Deus é tão intenso e verdadeiro que gera comunhão entre as pessoas divinas. Nesta mesma comunhão, somos convidados a nos envolver, pois o mesmo amor que a produz é ofertado gratuitamente a nós e não tem como estarmos unidos a Deus senão pelo amor. É preciso permanecer no seu amor para gerar comunhão e esta se torna o primeiro testemunho que nossas comunidades são chamadas a dar: “Vede como se amam!” Isso impressiona. “Tinham tudo em comum e dividiam seus bens com alegria!” Ah, isso convence e transforma. Portanto, o amor é mais concreto do que a gente imagina. O amor romântico pode iludir, enganar, decepcionar. Mas o amor, expresso na entrega, doação e partilha, gera comunhão e transforma vidas.
O amor não só cria comunhão, dando coesão ao grupo, mas o lança na direção das outras pessoas, dignas de reconhecimento e acolhida. Quando se ama não se faz discriminação de pessoas.  Discriminação é negação do ser humano e negação da imagem de Deus presente nele. Quando discriminamos, decidimos não amar, atentando contra a vida dos demais e agindo contra Deus e o seu projeto de vida e comunhão. É certo que Deus, em seu amor, nos salvou, mas ninguém está salvo ao ponto de desprezar os outros, dizendo: “nós estamos salvos, os outros não”. A salvação é direito de todos e todas, pois “Deus quer que todas e todos sejam salvos”. Ele não discrimina e também nós não devemos discriminar ninguém. Como entender, então, o fato de que Deus tenha “preferidos” e de que, a seu exemplo, a Igreja faz opção preferencial pelos pobres? É que nós quando preferimos uns, facilmente discriminamos outros. Com Deus é bem diferente. Imaginemos uma mãe que ama a todos os seus filhos, mas se preocupa mais com o que come pouco ou está doente. Isso não quer dizer que deixe de amar os outros. Assim, em grau bem maior, Deus ama a todos e todas, mas tem um cuidado especial por quem é mais fraco e pobre. Ele prefere estes - porque precisam mais dele - sem excluir os demais, aos quais chama a serem fraternos e solidários para com estes. Neste sentido, reafirmo que Deus não faz discriminação, embora tenha preferidos. Por isso, a Igreja, na América Latina e Caribe, desde Puebla (1979), faz opção preferencial pelos pobres e, em Aparecida, afirma que esta opção não é exclusiva nem excludente, assim como é próprio do amor de Deus.
             A Igreja existe para evangelizar. Como membros desta Igreja, somos enviados a todas as pessoas e culturas, como testemunhas alegres do amor e da misericórdia de Deus. Ele nos amou por primeiro e pede que permaneçamos nele para sermos perfeitos no amor e a nossa missão possa produzir bons frutos. O amor é a essência da vida e da missão. Portanto, quem ama é um missionário, uma missionária. Na evangelização, nos deparamos com muitos desafios e um dos mais presentes é a acolhida a quem age e pensa diferente de nós, por ser de cultura totalmente diferente. Só quem ama verdadeiramente é capaz de superar toda rivalidade, todo bairrismo, todo preconceito, discriminação e ocupar-se do essencial. O Espírito Santo se antecipa sempre nos lugares onde somos convidados a estar e, antes de dizermos algo, precisamos escutar. Todos nós estamos em busca da verdade e precisamos anunciar a Jesus, escutando também o que os outros têm a dizer. Aí é que tem sentido o diálogo – uma das exigências da evangelização. Só dialoga quem vive em busca da verdade; quem se sente dono dela, não tem porque dialogar. Só será possível experimentar plena alegria e realização na missão, quando soubermos acolher os outros como irmãos e irmãs, filhos e filhas muito amados de Deus. Assim, Deus será tudo em todos e “vai ser bonito viver”.

              Parabéns a todas as mamães e que possamos aprender delas a amar segundo Deus. Que Deus as abençoe!

              No amor do Deus que nos faz todos irmãos e irmãs, muito axé!

              Pe. Degaaxé

terça-feira, 8 de maio de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE O TREZE DE MAIO

           Aproxima-se a data comemorativa do treze de maio e é necessário refletir profundamente sobre o assunto, pois muitas coisas não estão bem esclarecidas. Inclusive existe, no Vaticano, um processo de beatificação da princesa Isabel pelos seus feitos com relação a negros e negras. Quem teve esta iniciativa tinha lá suas razões, que não vem ao caso agora, mas não podemos deixar de perguntar: quando serão beatificados os que contribuíram na formação de comunidades alternativas quilombolas? E os que participavam do movimento abolicionista? E os inúmeros negros e negras que lutaram e morreram nas insurreições pela libertação dos seus irmãos e irmãs? E... Nossa, foram tantos! Quando serão reconhecidos? Zumbi, por exemplo, só é herói nacional porque o Movimento Negro o fez herói, mas a sociedade, em geral, ainda não engoliu. Bom, quero resgatar, neste artigo, alguns aspectos marcantes o em torno da data treze de maio e que – acredito – pode servir de ficha de leitura para a reflexão em grupos de base e auxílio para um repensar as comemorações nesta ‘data’.
Convido, primeiramente a lançarmos um olhar para Brasil internamente, ou seja, nas Pressões Internas: a) as lutas por libertação: Os Quilombos eram sociedades alternativas, espaço de liberdade, reconstituição da África no Brasil. O maior deles foi Palmares, destruído em 1695, mas outros tantos permaneceram. Por todo o território brasileiro, havia revoluções e insurreições - revoltas armadas – nas quais havia participação de escravos fugidios. Destaco a Guerra dos Alfaiates, ocorrida em 1798, na Bahia, que, dentre tantas exigências, havia a abolição da escravatura. b) O processo abolicionista: muitos intelectuais colocaram seus conhecimentos a serviço da libertação. A favor da abolição havia: Luís Gama (em 1861 com Boditude), Joaquim Nambuco, José do Patrocínio, Antonio Bento, José Bonifácio e muitos outros. Assim como havia gente a favor, havia também muita gente contra a abolição, por exemplo: José de Alencar, Machado de Assis – que mantinham em suas obras o negro como escravo. Os obstáculos principais para o processo abolicionista eram: A ideia de que a agricultura entraria em colapso e, portanto, a abolição deveria ser gradual; a ideia de que o escravo era propriedade privada e, então, não se aceitava abolição sem indenização.
            Dirijamos o olhar, agora, para fora do Brasil e percebamos que os ventos estavam favoráveis, ou seja, havia Pressões Externas: trata-se de uma pressão internacional, especialmente da Inglaterra, para aumentar o mercado consumidor no Brasil, através do trabalho assalariado e a continuidade da escravidão atrapalhava os planos ingleses. É bom recordar também que o Brasil era o último país da América que ainda levantava a bandeira da escravidão, contrariando os ideais da Revolução francesa, tão difundidos em nosso continente: liberdade, igualdade e fraternidade. Isso fazia com que mais nações exercessem influência a favor da abolição.
Não havendo mais como manter este estado de coisas e, como só havia 5% de negros ainda escravos, conforme historiadores, vamos então resgatar as Leis que antecederam a Lei Áurea: a primeira delas foi a Lei Eusébio de Queirós, em 1856, através da qual apenas houve a diminuição do trafico de escravos. Em 1871, a Lei do Ventre Livre, pelo então ministro Visconde do Rio Branco, que preconizava que todos os nascidos de escravos estariam livres a partir da data da lei, sendo que, se o dono quisesse podia utilizá-los até completar 21 anos. Em 1875, a Lei do Sexagenário, assassinada pelos ministros Saraiva e Cotegipe, a qual dava liberdade a todos os escravos com mais de 65 anos de idade. Muitos morriam antes, pois o tempo de vida era muito curto, devido ao excesso de trabalho, que deixava suas forças debilitadas. E enfim, em 13 de maio de 1888, Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel. Esta Lei declarava livre todos os escravos e extinguia a escravidão no Brasil.
Tá e daí? Os negros e negras ficaram livres de que? Apenas das chibatadas nos troncos, em praças publicas e dos serviços pesados dos engenhos e das senzalas. Ficaram livres no papel, mas estavam escravos de fato: analfabetos, sem profissão, sem terras, marginalizados. Quem assinou a Lei de Ouro, esqueceu de assassinar a carteira de trabalho dos que deveriam receber algum benefício e recompensa por terem construído este país. O próprio sistema social capitalista fez com que se agravasse a situação dos negros e negras, pois nas cidades, não tinham para onde ir. Como no centro não era permitido, foram forçados a morar em palafitas e cortiços, às margens da sociedade, dando origem ao que chamamos de favelas hoje. No campo, sem terra, os negros e negras eram obrigados a trabalhar nas fazendas em troca do que comer; não produziam porque não tinham os meios de produção. No meio rural, as coisas foram piores: o governo não ofereceu terras nem subsídios e nem meios agrícolas para os negros e negras se auto-sustentarem.  No campo, a preferência foi para os imigrantes europeus, pois  a ideologia que predominava era de que era preciso embranquecer o país para salvá-lo da grande vergonha da escravidão. O próprio ministro Rui Barbosa mandou queimar, na alfândega do Rio de Janeiro, todos os registros que havia sobre a escravidão no Brasil. Que grande perda para a nossa memória histórica! Não tivemos direito nem de saber os detalhes do que se passou com nossos antepassados. Muitos negros e negras, até hoje, não conseguem assumir sua identidade, levados a isso, inclusive pelos estereótipos que mantém a realidade do racismo, perpetuando a realidade de escravidão.
Diante de tudo isso, o que precisava ter sido feito para um treze de maio efetivo e eficaz? Primeiramente, uma estrutura de acolhida dos afro-brasileiros que estavam saindo das senzalas para as cidades; uma política de acolhida destes, no momento em que eles ganhassem a liberdade; uma política voltada para o social em que o povo negro tivesse oportunidades iguais de salários, direito a moradias boas, a educação digna, uma atenção à saúde publica, já que a saúde do povo negro exige cuidados mais específicos, por exemplo: hiper-tensão, anemia falciforme e outros; políticas públicas de valorização de sua cultura, resgatando fragmentos culturais que se perderam ao longo da história; e tantas outras coisas podiam ter sido feitas...
           Como não podemos ficar olhando para o alto, esperando que caia do céu aquilo que achamos importante para o nosso Povo negro viver dignamente, passo a elencar algumas bandeiras levantadas pelo Movimento negro social e eclesial, reivindicando uma reparação do treze de maio mal feito: a bandeira por uma sociedade menos preconceituosa; por uma política agrária de reconhecimento das terras dos remanescentes de quilombos, pois a cultura afro é fruto da terra, a qual é expressão de sua identidade. Por mais respeito às manifestações religiosas afro; por uma política pública de valorização das diferenças étnicas; por Políticas e ações afirmativas: ‘para corrigir as desigualdades sociais e efetivar direitos sociais historicamente negados. Assim, visando eliminar as desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas por discriminação e marginalização. Um exemplo disso são as cotas, recentemente aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal. Por um Descolonizar as mentes, o conhecimento, recuperar a memória histórica, fortalecer os espaços e relacionamentos inter-culturais... (DAp., 96). E nós, afrodescendentes, resgatarmos a nossa dignidade, não de descendentes escravos, mais de um povo que tem uma cultura milenar de reis, e rainhas, guerreiros e homens e mulheres que sempre cultivaram a liberdade, a fraternidade e a solidariedade como valores primordiais.

Muito axé!
Pe. Degaaxé

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS COTAS RACIAIS

            As ações afirmativas e as políticas públicas que levam em conta a realidade do Povo negro são fruto e expressão de resistência; resistência que teve seu início desde o instante que o primeiro negro colocou os pés nesta terra. Ao longo dos séculos de escravidão, muitas e criativas foram as formas de resistência deste nosso Povo: suicídio, insurreições, banzo, fugas, quilombos, etc. Atualmente, existem novas estratégias, menos violentas, mas também muito eficazes, de acordo com os novos tempos. Dentre elas, quero destacar as ações afirmativas por parte do poder público. Elas não seriam possíveis sem muita militância, resiliência e organização. Para tanto, tem sido fundamental a participação do movimento negro em sua expressão social e eclesial. É bom que fique bem claro que as ações afirmativas não são favores ou concessões do Estado, mas conquistas da Comunidade negra, através de suas lideranças presentes nos diversos setores da sociedade. Como a abolição foi mal feita, segregando a Comunidade negra na marginalização e pobreza, era preciso intervenção da própria Comunidade para ajudar o Estado planejar o jeito certo de tratar seus cidadãos. Foi assim, então, que nasceram os programas de ações afirmativas, que são: “políticas de correção de desigualdades sociais e formas de efetivação de direitos sociais historicamente negados. São medidas especiais e temporárias, de origem estatal ou da sociedade civil, com o objetivo de eliminar as desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas por discriminação e marginalização, devido a motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros”[1].
            Entre estas ações afirmativas, estão as Cotas raciais, recentemente aprovadas pelo STF, reconhecendo a constitucionalidade das mesmas e, portanto, a obrigatoriedade de serem efetivadas pelo poder público e por toda a sociedade, em vista possibilitar maiores oportunidades aos afrodescendentes, vitimados por um passado cruel, marcado por negações de direitos, dignidade, humanidade. O que se quer é ‘reverter os processos de exclusão de raça e cor historicamente construídos no Brasil’. Dados da última Isto é revelam que, 70% dos pobres brasileiros são negros e que, a cada 4 brasileiros dos mais ricos, apenas 1 é negro. Esse quadro se torna ainda mais cruel quando se refere à universidade. Por exemplo, aqui na Universidade Federal gaúcha, antes das cotas, apenas 3% dos alunos eram negros, hoje esse percentual subiu para 11, 5%[2]. Esta mesma situação está presente em outros Estados brasileiros. Além das cotas, os afrodescendentes tem se beneficiado com o PROUNI e o ENEM. Em um de seus discursos sobre estes projetos, a presidenta afirmou que a finalidade destes é ‘deselitizar o ensino universitário em nosso país’. Vejo nesta afirmação, uma postura profética, que aponta para um novo jeito de conceber o ser humano e suas relações na sociedade. Uma sociedade justa e solidária só se constrói quando se busca ‘igualar os desiguais para que possam competir de igual para igual’.
             Muitos são os testemunhos positivos a respeito desta modalidade de ação afirmativa. Por exemplo, o ministro relator Ricardo Lewandowski diz que ‘ter negros e negras na universidade é uma forma de encurtar a distância que separa quem tem a pele negra dos cargos mais altos de nossa sociedade’. Bom, o fato de ter negro na universidade ainda não resolve a questão da elitização dos cargos mais altos, pois sabemos que na hora da seleção, o drama da ‘boa aparência’ ainda pesa, mas estar na universidade já é um passo muito importante. Aqui, no Rio Grande do Sul, avançou-se muito neste sentido, com as cotas para o serviço público e acho que muitos Estados podem e devem fazer o mesmo. Uma jovem negra, formada em administração, testemunhou, em nosso seminário da pastoral afro, que ela havia participado de entrevistas, juntamente com jovens não-negras, que nem tinham curso universitário, mas nunca havia sido chamada. Somente depois é que ela se deu conta – sem conter as lágrimas - que o problema estava na cor da sua pele, no famoso drama da ‘boa aparência’. É bom lembrar que somos todos iguais e, ao mesmo tempo, diferentes. Iguais na dignidade, mas diferentes no jeito de ser. As diferenças, devemos acolhê-las e não repudiá-las. Ou aceitamos as diferenças ou nos empobreceremos sempre mais – refiro-me a valores. Já afirmava Martin Luther King: ‘enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra’.
            O espaço nas universidades é mais uma das tantas conquistas da Comunidade negra. Mas embora termos alcançado, com muito sacrifício, há afrodescendentes que, mesmo sendo beneficiados, não concordam que tenha que ser assim. Realmente tem sido uma experiência desafiadora também por isso. O jornal gaúcho Zero Hora¸ do dia 01 de maio, traz uma lamentável situação: os cotistas negros preencheram apenas metade das vagas na UFRGS, neste semestre. Surpreso, como estava, quis saber a razão e, durante a leitura, percebi as causas são: constrangimento por ser cotista, devido a grande pressão da sociedade em desqualificar as cotas; insuficiente grau de informação disponibilizada, que não favorece interesse de procura; e, em terceiro, estão os cursos oferecidos, que não estão atraindo os possíveis beneficiados[3]. Há quem pense que quem é beneficiado pelas cotas, jamais prosseguirá, por falta de capacidade. Dentre os inúmeros casos que desmitificam esta ideia, cito apenas um, acontecido na PUCRS e que me deixou muito impressionado. Uma aluna negra do direito, que conseguiu acesso pelo sistema de cotas, tirou nota dez em todas as disciplinas, em todos os semestres e passou em primeiro lugar na prova da OAB. Este é um dos muitos exemplos que revelam que os (as) afrodescendentes são tão inteligentes como os outros, só não tiveram as mesmas oportunidades que outros. Será que isso não é suficiente para percebermos que é preciso desconstruir nossas mentalidades e repensar as oportunidades?

Muito axé!
Pe. Degaaxé




[1] Ministério da Justiça, 1996, GTI população negra.
[2] Cf. COSTA, Rachel. O resultado das cotas. Isto é, ano 36, n. 2216, 2 de maio de 2012, p. 52-54.
[3] Cf. BRUM, João. Vestibular 2012: cotistas negros ocupam metade de vagas na UFRGS. Zero Hora, Porto Alegre, 1º de maio de 2012, p. 21.