terça-feira, 8 de maio de 2012

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS COTAS RACIAIS

            As ações afirmativas e as políticas públicas que levam em conta a realidade do Povo negro são fruto e expressão de resistência; resistência que teve seu início desde o instante que o primeiro negro colocou os pés nesta terra. Ao longo dos séculos de escravidão, muitas e criativas foram as formas de resistência deste nosso Povo: suicídio, insurreições, banzo, fugas, quilombos, etc. Atualmente, existem novas estratégias, menos violentas, mas também muito eficazes, de acordo com os novos tempos. Dentre elas, quero destacar as ações afirmativas por parte do poder público. Elas não seriam possíveis sem muita militância, resiliência e organização. Para tanto, tem sido fundamental a participação do movimento negro em sua expressão social e eclesial. É bom que fique bem claro que as ações afirmativas não são favores ou concessões do Estado, mas conquistas da Comunidade negra, através de suas lideranças presentes nos diversos setores da sociedade. Como a abolição foi mal feita, segregando a Comunidade negra na marginalização e pobreza, era preciso intervenção da própria Comunidade para ajudar o Estado planejar o jeito certo de tratar seus cidadãos. Foi assim, então, que nasceram os programas de ações afirmativas, que são: “políticas de correção de desigualdades sociais e formas de efetivação de direitos sociais historicamente negados. São medidas especiais e temporárias, de origem estatal ou da sociedade civil, com o objetivo de eliminar as desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas por discriminação e marginalização, devido a motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros”[1].
            Entre estas ações afirmativas, estão as Cotas raciais, recentemente aprovadas pelo STF, reconhecendo a constitucionalidade das mesmas e, portanto, a obrigatoriedade de serem efetivadas pelo poder público e por toda a sociedade, em vista possibilitar maiores oportunidades aos afrodescendentes, vitimados por um passado cruel, marcado por negações de direitos, dignidade, humanidade. O que se quer é ‘reverter os processos de exclusão de raça e cor historicamente construídos no Brasil’. Dados da última Isto é revelam que, 70% dos pobres brasileiros são negros e que, a cada 4 brasileiros dos mais ricos, apenas 1 é negro. Esse quadro se torna ainda mais cruel quando se refere à universidade. Por exemplo, aqui na Universidade Federal gaúcha, antes das cotas, apenas 3% dos alunos eram negros, hoje esse percentual subiu para 11, 5%[2]. Esta mesma situação está presente em outros Estados brasileiros. Além das cotas, os afrodescendentes tem se beneficiado com o PROUNI e o ENEM. Em um de seus discursos sobre estes projetos, a presidenta afirmou que a finalidade destes é ‘deselitizar o ensino universitário em nosso país’. Vejo nesta afirmação, uma postura profética, que aponta para um novo jeito de conceber o ser humano e suas relações na sociedade. Uma sociedade justa e solidária só se constrói quando se busca ‘igualar os desiguais para que possam competir de igual para igual’.
             Muitos são os testemunhos positivos a respeito desta modalidade de ação afirmativa. Por exemplo, o ministro relator Ricardo Lewandowski diz que ‘ter negros e negras na universidade é uma forma de encurtar a distância que separa quem tem a pele negra dos cargos mais altos de nossa sociedade’. Bom, o fato de ter negro na universidade ainda não resolve a questão da elitização dos cargos mais altos, pois sabemos que na hora da seleção, o drama da ‘boa aparência’ ainda pesa, mas estar na universidade já é um passo muito importante. Aqui, no Rio Grande do Sul, avançou-se muito neste sentido, com as cotas para o serviço público e acho que muitos Estados podem e devem fazer o mesmo. Uma jovem negra, formada em administração, testemunhou, em nosso seminário da pastoral afro, que ela havia participado de entrevistas, juntamente com jovens não-negras, que nem tinham curso universitário, mas nunca havia sido chamada. Somente depois é que ela se deu conta – sem conter as lágrimas - que o problema estava na cor da sua pele, no famoso drama da ‘boa aparência’. É bom lembrar que somos todos iguais e, ao mesmo tempo, diferentes. Iguais na dignidade, mas diferentes no jeito de ser. As diferenças, devemos acolhê-las e não repudiá-las. Ou aceitamos as diferenças ou nos empobreceremos sempre mais – refiro-me a valores. Já afirmava Martin Luther King: ‘enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra’.
            O espaço nas universidades é mais uma das tantas conquistas da Comunidade negra. Mas embora termos alcançado, com muito sacrifício, há afrodescendentes que, mesmo sendo beneficiados, não concordam que tenha que ser assim. Realmente tem sido uma experiência desafiadora também por isso. O jornal gaúcho Zero Hora¸ do dia 01 de maio, traz uma lamentável situação: os cotistas negros preencheram apenas metade das vagas na UFRGS, neste semestre. Surpreso, como estava, quis saber a razão e, durante a leitura, percebi as causas são: constrangimento por ser cotista, devido a grande pressão da sociedade em desqualificar as cotas; insuficiente grau de informação disponibilizada, que não favorece interesse de procura; e, em terceiro, estão os cursos oferecidos, que não estão atraindo os possíveis beneficiados[3]. Há quem pense que quem é beneficiado pelas cotas, jamais prosseguirá, por falta de capacidade. Dentre os inúmeros casos que desmitificam esta ideia, cito apenas um, acontecido na PUCRS e que me deixou muito impressionado. Uma aluna negra do direito, que conseguiu acesso pelo sistema de cotas, tirou nota dez em todas as disciplinas, em todos os semestres e passou em primeiro lugar na prova da OAB. Este é um dos muitos exemplos que revelam que os (as) afrodescendentes são tão inteligentes como os outros, só não tiveram as mesmas oportunidades que outros. Será que isso não é suficiente para percebermos que é preciso desconstruir nossas mentalidades e repensar as oportunidades?

Muito axé!
Pe. Degaaxé




[1] Ministério da Justiça, 1996, GTI população negra.
[2] Cf. COSTA, Rachel. O resultado das cotas. Isto é, ano 36, n. 2216, 2 de maio de 2012, p. 52-54.
[3] Cf. BRUM, João. Vestibular 2012: cotistas negros ocupam metade de vagas na UFRGS. Zero Hora, Porto Alegre, 1º de maio de 2012, p. 21.

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