As ações afirmativas e as políticas públicas que levam em
conta a realidade do Povo negro são fruto e expressão de resistência;
resistência que teve seu início desde o instante que o primeiro negro colocou
os pés nesta terra. Ao longo dos séculos de escravidão, muitas e criativas
foram as formas de resistência deste nosso Povo: suicídio, insurreições, banzo, fugas, quilombos, etc.
Atualmente, existem novas estratégias, menos violentas, mas também muito
eficazes, de acordo com os novos tempos. Dentre elas, quero destacar as ações
afirmativas por parte do poder público. Elas não seriam possíveis sem muita
militância, resiliência e organização. Para tanto, tem sido fundamental a
participação do movimento negro em sua expressão social e eclesial. É bom que
fique bem claro que as ações afirmativas não são favores ou concessões do
Estado, mas conquistas da Comunidade negra, através de suas lideranças
presentes nos diversos setores da sociedade. Como a abolição foi mal feita,
segregando a Comunidade negra na marginalização e pobreza, era preciso
intervenção da própria Comunidade para ajudar o Estado planejar o jeito certo
de tratar seus cidadãos. Foi assim, então, que nasceram os programas de ações
afirmativas, que são: “políticas de correção de desigualdades sociais e formas
de efetivação de direitos sociais historicamente negados. São medidas especiais
e temporárias, de origem estatal ou da sociedade civil, com o objetivo de
eliminar as desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de
oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas por
discriminação e marginalização, devido a motivos raciais, étnicos, religiosos,
de gênero e outros”[1].
Entre estas ações afirmativas, estão as Cotas raciais, recentemente
aprovadas pelo STF, reconhecendo a constitucionalidade das mesmas e, portanto, a
obrigatoriedade de serem efetivadas pelo poder público e por toda a sociedade,
em vista possibilitar maiores oportunidades aos afrodescendentes, vitimados por
um passado cruel, marcado por negações de direitos, dignidade, humanidade. O
que se quer é ‘reverter os processos de exclusão de raça e cor historicamente
construídos no Brasil’. Dados da última Isto
é revelam que, 70% dos pobres brasileiros são negros e que, a cada 4
brasileiros dos mais ricos, apenas 1 é negro. Esse quadro se torna ainda mais cruel
quando se refere à universidade. Por exemplo, aqui na Universidade Federal
gaúcha, antes das cotas, apenas 3% dos alunos eram negros, hoje esse percentual
subiu para 11, 5%[2]. Esta
mesma situação está presente em outros Estados brasileiros. Além das cotas, os
afrodescendentes tem se beneficiado com o PROUNI e o ENEM. Em um de seus
discursos sobre estes projetos, a presidenta afirmou que a finalidade destes é
‘deselitizar o ensino universitário em nosso país’. Vejo nesta afirmação, uma
postura profética, que aponta para um novo jeito de conceber o ser humano e
suas relações na sociedade. Uma sociedade justa e solidária só se constrói
quando se busca ‘igualar os desiguais para que possam competir de igual para
igual’.
Muitos são os testemunhos positivos a respeito desta
modalidade de ação afirmativa. Por exemplo, o ministro relator Ricardo
Lewandowski diz que ‘ter negros e negras na universidade é uma forma de
encurtar a distância que separa quem tem a pele negra dos cargos mais altos de
nossa sociedade’. Bom, o fato de ter negro na universidade ainda não resolve a
questão da elitização dos cargos mais altos, pois sabemos que na hora da
seleção, o drama da ‘boa aparência’ ainda pesa, mas estar na universidade já é
um passo muito importante. Aqui, no Rio Grande do Sul, avançou-se muito neste
sentido, com as cotas para o serviço público e acho que muitos Estados podem e
devem fazer o mesmo. Uma jovem negra, formada em administração, testemunhou, em
nosso seminário da pastoral afro, que ela havia participado de entrevistas,
juntamente com jovens não-negras, que nem tinham curso universitário, mas nunca
havia sido chamada. Somente depois é que ela se deu conta – sem conter as
lágrimas - que o problema estava na cor da sua pele, no famoso drama da ‘boa
aparência’. É bom lembrar que somos todos iguais e, ao mesmo tempo, diferentes.
Iguais na dignidade, mas diferentes no jeito de ser. As diferenças, devemos acolhê-las
e não repudiá-las. Ou aceitamos as diferenças ou nos empobreceremos sempre mais
– refiro-me a valores. Já afirmava Martin Luther King: ‘enquanto a cor da pele
for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra’.
O espaço nas universidades é mais uma das tantas conquistas
da Comunidade negra. Mas embora termos alcançado, com muito sacrifício, há
afrodescendentes que, mesmo sendo beneficiados, não concordam que tenha que ser
assim. Realmente tem sido uma experiência desafiadora também por isso. O jornal
gaúcho Zero Hora¸ do dia 01 de maio,
traz uma lamentável situação: os cotistas negros preencheram apenas metade das
vagas na UFRGS, neste semestre. Surpreso, como estava, quis saber a razão e,
durante a leitura, percebi as causas são: constrangimento por ser cotista,
devido a grande pressão da sociedade em desqualificar as cotas; insuficiente
grau de informação disponibilizada, que não favorece interesse de procura; e,
em terceiro, estão os cursos oferecidos, que não estão atraindo os possíveis
beneficiados[3].
Há quem pense que quem é beneficiado pelas cotas, jamais prosseguirá, por falta
de capacidade. Dentre os inúmeros casos que desmitificam esta ideia, cito
apenas um, acontecido na PUCRS e que me deixou muito impressionado. Uma aluna
negra do direito, que conseguiu acesso pelo sistema de cotas, tirou nota dez em
todas as disciplinas, em todos os semestres e passou em primeiro lugar na prova
da OAB. Este é um dos muitos exemplos que revelam que os (as) afrodescendentes são tão inteligentes como
os outros, só não tiveram as mesmas oportunidades que outros. Será que isso não
é suficiente para percebermos que é preciso desconstruir nossas mentalidades e
repensar as oportunidades?
Muito axé!
Pe. Degaaxé
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