domingo, 3 de julho de 2011

ESSE DEUS QUE DIZEM AMAR O SOFRIMENTO

RECENSÃO


VARONE, François. Esse Deus que dizem amar o sofrimento. 2ª. ed., Aparecida, SP: Santuário, 2001, 299p.

             O autor François Varone é um renomado teólogo da França, que consegue, com uma capacidade incrível, apresentar questões polêmicas da fé em linguagem muito simples. Ele escreveu também Esse Deus ausente que é um problema, pela Cerf, em 1981.


             O autor, na presente obra, nos ajuda a refletir com profundidade sobre o sentido do sacrifício de Cristo, que não se trata de um sofrimento compensatório, mas revelação do amor e da misericórdia de Deus. Está dividida em seis longos capítulos: o primeiro capítulo nos introduz na teoria da satisfação, que faz da morte de Jesus um em si, um pacote de sofrimentos como valor de uma troca e mostra uma panorâmica sintética de todos os demais capítulos. No segundo capítulo, o autor serve-se de Elias, um modelo de profeta do Antigo Testamento, para esclarecer a ação profética de Jesus. No terceiro capítulo, ele empenha-se em tirar as barreiras da morte de Jesus e colocá-las em relação com a sua vida e sua ação profética. No quarto capítulo, através da carta aos Hebreus e da carta aos Romanos, ele mostra uma unidade inquebrável entre morte e ressurreição, trazendo uma estrutura de revelação que funda e anima a experiência da fé. No quinto capítulo, aponta perspectivas novas a partir da relação entre o primeiro e o novo Adão, não como compensação e restituição, mas como revelação e aperfeiçoamento. No sexto capítulo, ele passa da prática profética de Jesus à prática pessoal do crente. Conforme o processo de revelação, a salvação é a vida concreta do ser humano.

Segundo o Varone, antes de ser uma mensagem, o cristianismo é uma experiência de salvação, integrando em si todos os aspectos da existência humana, particularmente o sofrimento e a morte. Entre sangue e salvação, a síntese se fez sob o signo da religião e essa síntese traz um nome: a‘satisfação’. Jesus, sofrendo e morrendo na cruz, substituindo aos seres humanos pecadores, compensou por eles a ofensa infinita feita a Deus por seus pecados. Seria justiça se Deus deixasse o ser humano na situação em que se encontrava, mas não seria justiça completa, pois se é justo que o pecado seja punido, pertence à justiça divina igualmente que a ofensa seja reparada.

Seguindo sua reflexão, o autor fala especificamente da morte de Jesus, como conseqüência lógica de seu engajamento profético. Ao invés de dizermos: ‘Jesus morreu por nossos pecados’; é preciso dizer: ‘Jesus não morreu por nossos pecados, mas Jesus morreu por causa de seu combate profético levado até o fim’.Ele parece morrer como um fracassado, mas, para além do fracasso, é preciso descobrir o valor salvífico e universal de sua morte. Diferentemente do que nos fez pensar a tradição cristã ulterior, através da teoria da satisfação, é preciso reconhecer que Jesus realiza o misterioso servo de Deus de Isaías, não por substituição e compensação formal, mas antes pelo investimento concreto de sua prática a serviço da libertação dos oprimidos.

Neste sentido, é feita uma análise da linguagem do sacrifício judaico. Neste sacrifício que Deus dá ao povo para celebrar – esboço do sacrifício de Cristo - é Ele que abre ao povo a possibilidade de ter acesso de novo ao Deus da aliança e de encontrar na comunhão com Ele sua própria perfeição de povo de Deus. Com Jesus, não tem mais necessidade de sacrifício para ter acesso a Deus, pois toda a sua vida é percebida como acesso a Deus; toda sua vida é compreendida como sacrifício, o sacrifício definitivo, realizado ‘de uma vez por todas’. A vontade de Jesus é de fazer da vida humana, com sua fraqueza, seus sofrimentos e enfim sua morte, um caminho para a vida, para a consumação, a perfeição. A prova disso é a ressurreição: é nesse acontecimento, que o julgamento de Deus aparece enfim em toda a plenitude de sua ação em favor do ser humano. Portanto, na revelação acontece o processo fundamental pelo qual Deus salva em Jesus Cristo. Na troca compensatória, o valor é o sofrimento; na revelação, o sentido é a libertação do desejo do ser humano.

O autor Varone procura desmitificar a falsa compreensão do sofrimento de Cristo, lembrando que de modo algum é um valor em si. Jesus não procurava sofrer, mas viver uma prática positiva, mesmo se devesse sofrer cruelmente por causa dela. Jesus não devia nem queria sofrer em nosso lugar, mas antes investir sua vida até o fim para libertar nosso desejo e nos salvar. O sofrimento é para Jesus a ocasião de revelar o amor que tem para conosco e, para nós, a possibilidade desconcertante de o reconhecer. Assim a direção da fé está centrada no sacrifício do Cristo e isso quer dizer na prática histórica levada até a morte e desembocando na ressurreição, prática em que Deus inaugurou e revelou a finalidade infinita da existência humana. Desde então, numa caminhada de Igreja que faz memória deste sacrifício, atualizando-o cotidianamente, o que é importante não é o rito celebrado pelo sacerdócio, não é o poder especial da casta sacerdotal, mas antes a prática real dos crentes e seu poder real de atingir a realidade humana para lutar contra as mentiras dos poderes humanos e nessa realidade por a verdade do Deus diferente.

É uma obra muito rica e de um imenso valor profético. Estou realmente impressionado e desconcertado com esta linguagem mais humana e leve sobre o“peso” do sofrimento de Cristo. O autor François Varone, com muita sabedoria e ousadia, restitui o cristianismo à sua vocação original: não ser uma religião da compensação, mas uma prática da liberdade como honra rendida a Deus e reconhecimento de seu amor. Como ele mesmo recorda: nós, muitas vezes, como Elias, apenas reproduzimos estruturas de domínio, apegando-nos a certa posição ou encargo que mais aterrorizam as pessoas do que as ajudam numa caminhada de crescimento e amadurecimento da fé. A nossa prática cristã perde sua razão de ser quando buscamos apenas ser servidos e não servir. Devemos nos perguntar sempre: que imagem de Deus eu reproduzo com o meu jeito de viver a fé? Se não cuidarmos, a imagem do Deus de amor e misericórdia revelado por Jesus ficará ofuscado diante de práticas que reforçam a imagem de um Deus carrasco e dominador, que vive exigindo sacrifícios das pessoas.

Inegavelmente, esta obra leva a uma desconstrução de toda uma mentalidade sacrificialista, que se opõe à fé e convida a uma nova postura na reflexão teológica, que visa ajudar as pessoas a acolher no gesto salvador de Cristo, a pura gratuidade e generosidade de Deus. Assumido no amor, ele revela até onde pode ir o amor daquele que manifesta Deus. Jesus convidou os discípulos a deixar tudo, a ir para a outra margem, a oferecer a outra parte, a assumir a cruz e segui-lo, ou seja, Jesus tinha uma prática que contagiava e o sacrifício pessoal do discípulo faz parte de uma decisão também pessoal no seguimento de Jesus. Assim como outrora, Jesus continua desafiando as pessoas a uma postura mais comprometida que vá na contramão do poder e da violência. A reflexão sobre o sofrimento de Cristo, purificada de toda a dimensão compensatória, nos levar a um desejo maior de imitá-lo em sua fidelidade ao projeto de Deus, sendo agentes de transformação diante das injustiças e solidários com os crucificados de ontem e de hoje.

Eu indico a presente obra aos professores, estudantes de teologia e também a catequistas e agentes de pastoral, para que se convençam de que o pano de fundo do sacrifício de cristo não é um querer divino, mas um comprometimento sem par com a realidade humana, compreensível somente no nível do mistério do amor de Deus.



Modjumbá axé!

Pe. Degaaxé

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