Este breve texto resgata um pouco da história dos
APNs e a sua relação frutuosa com a Pastoral afro-brasileira. Embora que
atualmente existem juntos e com caminhos diferentes, deve-se reconhecer que os
APNs são “semente” plantada em terra boa, da qual saiu a Pastoral afro.
Chamamos de Pastoral afro à articulação oficial da CNBB, surgida em 1996,
enquanto que os APNs surgiram em 1983. Esses dados não querem desmerecer as iniciativas
de resistência e promoção da comunidade negra desde que o primeiro negro ou
negra pôs os pés nessas terras como escravo ou escrava. Esta reflexão nos permite
encontrar respostas para os seguintes questionamentos: o negro deve deixar de ser
negro para ser cristão? Pode um negro ser um cristão autêntico se nega a sua
negritude? Como as práticas dos (as) agentes da pastoral afro podem contribuir
para a construção de outra sociedade possível? Estas questões trazem uma
inquietação muito grande não somente para os agentes de pastoral, mas para toda
a Igreja.
O nascimento dos
APNs coincide com a descoberta da negritude na Igreja
Não
há dúvida que, com o término do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica
tornou-se um canal expressivo para as reivindicações dos movimentos sociais[1],
em particular para o que vem do povo negro. Cresce nas lideranças a consciência
da necessidade de se refletir sobre a realidade de conflito racial no Brasil.
Este é também um período que gera a Teologia da Libertação[2]
no intuito de contribuir com uma reflexão teológico-prático-pastoral no
interior da pastoral social das Igrejas, na aproximação das realidades do povo
negro, periferia, favelas e organização de movimentos sociais e populares[3].
Estes, aos poucos vão descobrindo as causas sociais da situação de miséria e
exclusão, às quais foram submetidos e passam a exercitar a solidariedade como
alternativa para superar tal situação[4].
A presença do negro e da negra vivendo sua fé sempre marcou a história da
Igreja. Em meio a colonização, escravidão e tanto sofrimento, não faltou o
resgate das confrarias e irmandades, já cultivadas na África, e que aqui, em
contato com as que vieram da Europa, foram responsáveis por salvaguardar a fé e
valores do povo negro[5].
Os elementos fundamentais da fé cristã, juntamente com sua cosmovisão e práxis
solidária, trouxeram para a comunidade negra uma rica reflexão e práxis. É na
participação junto às Comunidades Eclesiais de Base – CEBs - que os
afrodescendentes podem manifestar sua fé de forma concreta e comprometida[6].
“Na identificação dos problemas que afligem a vida dos empobrecidos, desponta a
questão do racismo e da discriminação. A percepção de que a discriminação e o
racismo agravavam ainda mais a situação no mundo dos pobres e marginalizados,
colocava um desafio a mais para os negros na Igreja”[7].
Foi também
de fundamental importância, a realização da Terceira Conferência Geral dos
Bispos latino-americanos e Caribenhos em Puebla, em 1979. Uma das grandes
contribuições que o documento final trouxe foi a relação das feições sofredoras
dos indígenas e afrodescendentes com as feições sofredoras de Cristo (Puebla,
n. 34). No ano seguinte, o Conselho Episcopal Latino-americano - CELAM -
realizou um "encontro na Colômbia, retomando a questão, propondo pontos
concretos com relação à Comunidade Negra, reassumindo o compromisso de, como
Igreja, dar uma maior abertura às iniciativas afro, o que suscitou, a partir de
1980, o surgimento dos Encontros de Pastoral Afro-Americana - EPA. Por ocasião
do segundo EPA, em Esmeralda, no Equador, nasce no Brasil, os Agentes de
Pastoral Negros - APNs. Porém, o seu surgimento está muito mais ligado
ao Grupo de União e Consciência Negra – GRUCON, do qual participavam também
não-cristãos. Surgiu um conflito interno quando houve a proposta da criação de
uma pastoral do negro ou pastoral afro, ligada à Linha 2 da CNBB. Deste
conflito, o grupo se dividiu, permanecendo como GRUCON somente a parte que quis
continuar independente da Igreja. A outra, passou a usar, pela primeira vez, a
terminologia Agentes de Pastoral Negros que, mesmo nascendo como uma pastoral
do negro na Igreja, rompe os limites eclesiais, em sua práxis, sendo também um
movimento negro, marcando sua ação e militância pela questão da fé[8].
Hoje, os APNs realizam uma caminhada independente, pois não se consideram mais “da
Igreja”. A partir daí inúmeros outros grupos foram surgindo, acompanhados e
articulados pelo Secretariado Nacional da Pastoral Afro, ligado a CNBB.
Ser agente da pastoral afro é ter
engajamento profético nas diversas lutas da comunidade negra
O contexto em que se dá a criação da Pastoral afro está marcado pelas
“muitas iniciativas no trabalho com as comunidades negras, pela necessidade de
ter uma coordenação que articulasse os vários serviços, funcionasse como ponto
de referência e contribuísse para que os trabalhos efetivamente acontecessem. A
Pastoral afro-brasileira tem acompanhado e participado da organização dos
serviços que dizem respeito à comunidade negra. Assume como objetivos: a)
animar os grupos negros católicos existentes; b) incentivar o surgimento de
novos grupos que buscam sua identidade numa sociedade e Igreja plurais; c)
promover a integração, e articulação dos grupos e das iniciativas, respeitando
as suas particularidades; d) colaborar na construção de uma sociedade justa e
solidária, como exercício da cidadania a serviço da vida e da esperança, e
testemunhar a fé em profunda comunhão eclesial”[9]
Diferentemente de outros agentes de pastoral, os
agentes da pastoral afro, segundo o Pe. Toninho, cultivam três posturas: a)
tomada de consciência quanto a discriminação na sociedade; b) levar o debate
sobre a questão do racismo para dentro das Igrejas, despertando-as para a
tomada de consciência sobre o racismo internalizado, inclusive em suas práticas
e procedimentos; c) alicerçar a luta contra o racismo e a discriminação a
partir da experiência fundante de fé de cada integrante[10].
Pela mística da negritude, resgatam os valores afro, mantendo atitudes
de fé e luta, no exercício da solidariedade com os excluídos da sociedade. Assim,
muitas lutas da negritude têm encontrado no projeto de atuação destes agentes
uma atenção toda especial. São elas: a luta pelos direitos étnicos e humanos; a
luta pela igualdade de oportunidade; a luta contra toda forma de racismo; a luta
pela valorização da cultura negra; a luta ao lado dos quilombolas pela terra,
fonte vital e herança ancestral; a luta pelo direito à vida; a luta por um
processo educacional, comprometido com a sua realidade; a luta por melhores
salários; a luta por uma teologia enegrecida; a luta contra a pena de morte; a luta
contra o extermínio de crianças; a luta contra os cinturões de pobreza que a
cada dia aumentam mais; a luta pela cidadania; a luta da mulher, que é também a
luta da mulher negra, pelo resgate de sua subjetividade e dignidade. E tantas
outras lutas[11].
Conclusão
Os elementos da negritude, uma vez reconstruídos e resgatados enegrecem a
Igreja, pois oferecem aos negros e negras um jeito próprio de ser e contribuem para
que a evangelização seja sempre mais dinâmica. O próprio documento de Aparecida
reconheceu que os afrodescendentes se caracterizam “pela expressividade
corporal, enraizamento familiar e sentido de Deus” (DAp 56). Assim, buscam
oferecer o melhor de si para que a prática pastoral seja includente e
comprometida. Muitos desses negros e negras vêm de práticas solidárias em favor
das comunidades mais pobres e questionam a muitos que, dentro da Igreja, não
contribuem para que ela seja de fato profética. A nossa missão eclesial traz
como característica um discipulado reparador, promovendo a vida e dignidade dos
afrodescendentes, denunciando as injustiças, discriminação e políticas de
exclusão, às quais são submetidas comunidades negras.
Axé!
[1] "No período do Regime Militar no Brasil, poucas
foram as instituições onde se tornou possível organizar as lutas de resistência
e cidadania. Neste sentido, a Igreja, por ser uma instituição menos visada pelo
sistema repressor, acabou se constituindo num espaço privilegiado para o
fortalecimento dos movimentos sociais (...) Alguns autores, como Viola e Scott
chegaram a afirmar que mesmo nos períodos mais repressivos, as CEBs foram
virtualmente as únicas organizações populares no Brasil"( ROCHA, J. G., Op. cit., p. 68). Cf. também KÄRNER, H. Movimentos sociais: Revolução no Cotidiano. In
WARREN, I. S.; KRISCHKE, P. J. (Org.) Uma
Revolução no cotidiano? Os movimentos Sociais na América do Sul. Brasiliense,
São Paulo, 1987, p. 25.
[2] Ibid., p.
68.
[3] Cf. SILVA, Marcos Rodrigues
da. Emergência da consciência de ser negro/negra
na pastoral, p. 7.
[4] Cf. ROCHA, José Geraldo da.
Teologia e negritude, p. 69.
[5] Cf. SILVA, Marcos Rodrigues
da. Op. cit., p. 7.
[6] A partir destas comunidades, que funcionavam como
verdadeiras escolas de formação para a cidadania, muitos grupos se organizaram
visando a transformação da sociedade e buscando readquirir seus direitos"
(Ibid, p. 68).
[7] Ibid., p. 69.
[8] Cf. ROCHA, José Geraldo da,
Op. cit., p. 69.
[9] 15º Plano
Bienal de Atividades do Secretariado Nacional, doc. Da CNBB, p.63 apud VI CONENC- Texto Base. Refletindo o rosto negro da Igreja: de
Medellin à Aparecida. Brasília, 2009, p. 40-41.
[10] Cf. SILVA, A. A. da. in Id.
Ibid., p. 73; Cf. também SILVA, A. A. in ATABAQUE-ASETT. Op. cit., p. 14.
[11] SILVA FILHO, S. T. da. Vida Religiosa e negritude. In .
In Negros e Indígenas: Novos rostos
da Vida Religiosa. Revista Convergência, Rio de Janeiro, 1995, CRB, n. 284,
p. 373.
Um comentário:
Saudações. Você pode ver esse mesmo texto em http://pastoralafroenamerica.blogspot.com/2013/06/agentes-de-pastoral-negros-semente-da.html. Além dos links de fazer o trabalho! Espero que a dizer-nos a sua opinião. Muito obrigado!
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