sábado, 2 de junho de 2012

A SOCIEDADE HUMANA VISTA À LUZ DO MISTÉRIO DO DEUS UNO E TRINO

            Dizemos e fazemos tantas vezes o sinal da cruz, pronunciando: em nome do Pai e do Filho e do Espirito Santo. É tão bonito pronunciar esta fórmula, mas poucos sabem o que ela realmente significa. Até mesmo os teólogos, dizem tantas coisas sobre este assunto, mas Deus vai muito além do que tais limitados conhecimentos podem abarcar. Se chegássemos a compreendê-lo totalmente, já não seria mais Deus. Mesmo revelado, permanece sempre Mistério. Conta-se que o grande Santo Agostinho estava na praia, andando de um lado para o outro, pensando sobre o mistério da Santíssima Trindade: ‘Como Deus pode ser Um e Três, ao mesmo tempo?’, questionava-se. Embora envolvido nestas suas elucubrações, conseguiu perder um pouco de seu precioso tempo para observar um menininho que havia cavado um buraco na areia e ia constantemente ao mar pegar água, com uma pazinha, para colocar dentro do buraquinho. O sábio Agostinho vai, então, ao encontro do menino e lhe pergunta: ‘Mas o que você pensa que está fazendo?’ Respondeu o menino: ‘Não vê? Eu quero que toda aquela água do mar caiba dentro deste buraquinho!’ Disse-lhe Agostinho: ‘Mas isso é praticamente impossível!’ Então, o menino exclamou: ‘É mais fácil eu colocar toda a água do mar dentro deste buraquinho, do que você conseguir que o mistério do Deus Uno e Trino caiba na sua cabecinha!’ O menino desaparece, em seguida. O grande Santo Agostinho retira-se, perguntando se este menino não seria um anjo. E é assim que a história termina. Perdoem-me pela minha ignorância, mas não sei quem inventou esta história; só sei que traz uma verdade muito profunda: Deus não é um Mistério para ser compreendido, mas para ser acolhido e vivido. Vamos buscar um pouco de ensinamento teológico sobre esta questão, para depois tirarmos conclusões para nossos relacionamentos. Vamos lá!
           Aprendemos que Deus é uma comunhão de pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. O Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus. Não são uma Tríade (três deuses), mas uma Trindade, pois são Três e, ao mesmo tempo, Um. Em que sentido são Três? É que, em sua individualidade e relação, são chamados de Pessoas, ou seja, Três Pessoas divinas. Mas são Um porque as Três Pessoas formam um só Deus, isto é, formam a mesma natureza divina. Portanto, Deus é único, mas não é sozinho; é uma Comunidade de relações; é uma comunhão (communio) de pessoas. A expressão grega utilizada para definir como acontece esta comunhão é perichóresis, que em latim se diz circuminsessio e circumincessio. Trata-se de expressões que originariamente tem a ver com dança: ‘um dança ao redor de outro e outro dança em torno de um”[1]. Nesta relação de comunhão, uma pessoa está nas outras e contém as outras duas; cada uma penetra as outras e é penetrada pelas outras[2]. Mas cada uma das pessoas conserva a sua identidade, de forma que o Pai não é o Filho nem o Espírito, o Filho não é o Pai nem o Espírito e o Espírito não é o Pai nem o Filho. Onde se encontra Uma, estão as outras Duas; a ação de Uma é cooperada pelas Outras. Portanto, nunca há abandono nem solidão, nem exclusão e nem isolamento. O individualismo não tem lugar na Trindade, pois só há comunhão e interpenetração. Fora os complementos teológicos, aprendemos tudo isso do próprio Jesus, que afirmava: “Eu e o Pai somos um” e ainda: “Vos enviarei, da parte do Pai, o Espírito da Verdade”. A conclusão a que se chegou, então, é que Deus é Trindade e que “a Trindade é a melhor comunidade”[3], porque as Pessoas divinas se amam intensamente. Assim, conforme a expressão de São João, “Deus é amor”. O teólogo Luiz Carlos Susin utiliza uma expressão muito profunda para falar desta relação de amor em Deus-Trindade: “Deus não existe para depois amar: ele existe porque é amor. E Deus é Trindade porque é amor”[4].
           O Deus amor é um mistério de comunhão em si mesmo e para o universo. É uma realidade que convida à participação. O universo inteiro é convidado a entrar nesta comunhão, pois o amor que há na Trindade penetra tudo e possibilita este movimento. Não é à toa que, conforme afirmou um bispo, “somos transbordamento do amor da Trindade”[5], pois o amor é tão intenso em Deus que forma uma comunhão e extravasa, transborda. Eis a razão, portanto, de penetrar tudo e tudo renovar permanentemente. A partir deste mistério, nasceu a família humana[6], as comunidades e a própria sociedade. A partir da Trindade, a sociedade pode sim retomar sua verdadeira finalidade. Quem se deixa envolver por esse mistério, integra-se internamente, tornando-se capaz de construir fraternidade e comunhão na família e comunidade, promovendo a inclusão e lutando contra toda marginalização. Todo propósito nesta direção é reflexo da relação trinitária. De um modo geral, frente a uma sociedade que tenta deixar Deus de lado em suas organizações, em que cada um (a) se preocupa com seu próprio ‘umbigo’, somos convocados a sustentar esta grande verdade: Deus é amor e só o amor produz comunhão, porque é capaz de sacrificar-se pelo outro. Eis o grande desafio para a nossa sociedade é remodelar-se a partir deste Mistério, o qual se dá - como dizia o teólogo russo P. A. Florenskij, referindo-se às recíprocas kenosis das Pessoas divinas - num constante auto-esvaziamento, em que um nunca quer ser antes do outro, mas reciprocamente se elevam e diz um para o outro: tu és[7]. O mesmo vale para nossas famílias e comunidades.
          Que cada pessoa possa dizer para si mesma: Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, porque é amor; e eu sou envolvido (a) neste Mistério, porque sou amado (a). Na verdade, Deus é um mistério que, mais do que palavras, pede silêncio. E se tivermos que dizer algo, seja em humilde adoração, como uma criança que balbucia: Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo...

Axé!
Pe. Degaaxé



[1] cf. GRESHAKE, Gisbert. Der dreieine Gott: eine trinitarische Theologie. Feriburg-Basel-Wien: Herder, 1977, p. 78-94. A tradução foi realizada pelo prof. Érico Hammes, doutor em teologia.

[2] Cf. BOFF, Leonardo. A Trindade, a sociedade e a libertação. Leonardo Boff, Petrópolis: Vozes, 1986.
[3] A frase é de Leonardo Boff.
[4] SUSIN, L. C. Deus: Pai, FIlho e Espírito Santo. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 58.
[5] Esse bispo é D. Orlando Brandes, uma grande referência no Brasil para a transformação de grandes estruturas em pequenas comunidades. Ele não nega ter entendido algo da dinâmica trinitária.
[6] O Deus que adoramos como Santíssima Trindade ou Trindade Santa, ao longo da história, sempre se revelou aos seres humanos de todas as culturas. Como as experiências variam de cultura para cultura, variam também os nomes de Deus. Quando nos referimos ao Povo negro, muitas tribos bantu, por exemplo, utilizam a expressão Nzambi para se dirigirem a Deus e, embora seja comum chamar a Deus de Pai – Tatá Nzambi - em alguns grupos aparece como Mãe - Mama Nzambi. Os bantu dizem que Nzambi fez, num só instante, o homem, a mulher e as crianças, fazendo da comunidade o centro de suas vivências. Os da tradição Yorubá – da qual faço parte - creem num Deus único, incriado e criador que quando fez o ser humano, o fez de forma comunitária, ou seja, num só ato, fez o homem e a mulher. Todos cultivam a certeza de que se Deus os fez de forma comunitária, é porque assim é o seu ser. Na tradição judaico-cristã, Deus faz o ser humano também comunitariamente. A partir de Cristo, os cristãos e cristãs afirmam que este Deus, além de Criador e Salvador, é a comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ou seja, Santíssima Trindade. É sempre o mesmo Deus que quer ser tudo em todos e todas.
[7] “A palavra kenosis como máxima expressão do amor, dá uma resposta à realidade atual. Não ter medo de sair de si e entrar no outro. O amor vai e volta ao mesmo tempo; isso é de Deus” (afirmações do prof. Lubomir Zak, durante aulas para a turma de mestrado de teologia da Faculdade de Teologia da PUCRS).

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