"Onde estás? A serpente enganou-me e eu comi" (Gn 3, 9s)
"Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Jo 3, 35)
A tradição judaico-cristã situa a origem do mal no ato de
decisão livre do ser humano, desde os primeiros pais. Com o pecado – grande mal
– o ser humano diz não à comunhão com Deus, recusa sentir-se amado, fugindo do
compromisso de amar aos demais. A pergunta – ‘Onde estás?’ - que lhe é dirigida por Deus, traz à tona dois
aspectos fundamentais: de um lado, o interesse e a preocupação de Deus a
respeito da vida do ser humano. O rumo que este vem a dar à sua vida atinge, de
alguma forma, o próprio Deus que o criou à sua imagem e semelhança para poder
partilhar com ele os seus dons. Portanto, a expectativa de Deus para com o ser
humano é sempre a melhor ‘possível’. De outro lado - por parte do ser humano -
vemos alguém que perdeu o referencial sobre o verdadeiro sentido da sua vida;
alguém que não consegue discernir entre bem e mal, ou seja, alguém que, por não
querer encontrar mais a Deus, não consegue mais encontrar-se a si mesmo, está
perdido, sente-se desnorteado, desorientado. Na verdade, não está mais onde
Deus o colocou, não soube contribuir com o sonho de Deus e isto não é nada bom.
Hoje, esta pergunta poderia ser dirigida da seguinte forma: Onde estás neste
teu mundo? Em que situação te encontras? Por que não estás onde deverias estar?
Por que te afastas do bem? Por que não percebes o mal que estás causando a ti
mesmo e aos outros?
‘Eu estava nu e me
escondi’. Esta resposta significa o momento mais dramático da vida. Deus
deve ter se entristecido bastante. A perda dos referenciais básicos para se
viver chega ao ponto de desconhecer a própria ação divina, achando que de Deus
pode vir algum mal. Quando perdemos a intimidade com Deus, passamos a
desconfiar dele e de sua ação. Ele passa, então, a significar ameaça e por isso
nos escondemos, nos protegemos. Geralmente, fugimos daquilo que nos mete medo
ou nos causa pânico. Trata-se de uma situação a ser evitada, porque não nos faz
bem. Este é o estado de confusão a que se chega quando tomamos a decisão de
manter Deus distante da nossa vida. Diante da interpelação divina – ‘que fizeste?’ - a segunda resposta é
ainda mais lamentável: ‘Eu não, foi ela!
Eu não,... todos erraram, mas ninguém quis assumir a culpa. Temos
dificuldade de assumir nossos limites, mas com facilidade atingimos os outros,
como se somente os outros cometessem erros. Nem sempre agimos bem e não
conseguimos avaliar seriamente as consequências dos nossos atos, mas estamos
sempre prontos a dar lição de moral aos outros. Antes de exigir a mudança dos
outros, mudemos a nós mesmos. São João Calábria nos recorda que ‘o sermão do
bom exemplo é o mais eficaz’ e ainda: ‘sejamos o evangelho vivo, antes de
pregar, pratiquemo-lo’.
A maldição caiu somente sobre a serpente. Corremos o risco
de pensar que se tratava da cobra dos nossos dias ou que Deus realmente
amaldiçoou a criatura que ele mesmo fez. Será que Deus agiria assim? De Deus não
pode vir maldição porque ele é fonte de bênçãos, bondade absoluta? Dizer que
Deus pode amaldiçoar é o mesmo que dizer que ‘um círculo pode ser quadrado’.
Portanto, está na hora de revermos nossos conceitos a respeito de Deus. A maldição
pode estar ligada à decisão de agir como adversário de Deus; neste caso, a
maldição é automática. E por que a serpente aparece nesta história e não outro
animal? É que na época de conquista da terra de Canaã, o povo da Bíblia foi se
acomodando às estruturas que encontrava e ao modo de vida dos habitantes que lá
estavam. Pareceu bem seguir a religião deles, pois era atraente e menos
comprometedora. O povo local - denominado cananeus - tinha a serpente como
símbolo de sua religião. Daí se entende porque o catequista bíblico a coloca como
tentadora e causadora de infidelidade, entendendo como infidelidade a renúncia
da religião dos Antepassados, ou seja, ao se deixar atrair pelo deus-serpente
os israelitas deixavam de lado a religião do Deus Javé. A infidelidade na
Bíblia, na maioria das vezes, está ligada à questão religiosa.
Em Jesus, Deus se mostra muito solícito para com as pessoas,
pois o amor tem pressa para cuidar e salvar. A resistência às palavras de
Jesus, no fundo, é resistência em fazer a vontade de Deus e viver a
familiaridade com ele, situação que vem desde as origens. O fato de existir
pecado, prova que somos limitados e que o nosso livre arbítrio, sem
responsabilidade, pode agir contra nós. Mas, segundo Paulo, isto não deve nos
desanimar, pois onde parecia abundar o pecado, superabundou a graça de Deus,
que é sempre maior, não importando o tamanho do pecado. Ela não se deixa vencer.
Deus, em sua misericórdia, nos chama sempre de novo a fazer experiência do seu
amor que perdoa e restaura, tornando-nos instrumentos desta mesma misericórdia.
A resposta adequada da nossa parte deveria ser a disposição em praticar a sua
Palavra e fazer a sua vontade, critérios básicos para pertencer à família de
Jesus. Estejamos atentos para não fixar o nosso olhar nas coisas visíveis, deste
mundo, pois mesmo que nos faça bem e nos traga algum prazer, será sempre
passageiro. A experiência cristã de Deus nos faz viver uma esperança viva, pois
é uma afirmação da primazia do Reino de Deus e da sua justiça, garantindo que
não é para esta vida que somos chamados investir o melhor de nós. Esta
esperança não decepciona porque é fiel aquele que promete. Atentos aos seus
ensinamentos e abertos à sua inspiração, certamente poderemos intervir, de modo
eficaz, na realidade que nos cerca.
Axé!
Pe. Degaaxé
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